São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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A pedagogia da crise

ASPÁSIA CAMARGO

Erramos: 29/08/95
No idioma chinês a palavra crise se compõe de dois ideogramas inseparáveis: ameaça e oportunidade, e esta é uma sábia lição de cultura oriental que nos permite extrair proveito da aparente virulência da crise que se desencadeou com a intervenção recente no Banco Econômico.
Vamos esquecer a fulanização e tratar os fatos como indícios significativos de que o problema estrutural que nos persegue há mais de uma década, e que por acordo tácito tem sido escamoteado ou escondido, veio à luz do dia e chegou às manchetes de primeira página de todos os jornais.
Daqui para frente a consciência crítica do país -e não apenas os financistas e os economistas- poderá falar com desenvoltura sobre um tema que está na raiz de muitos dos nossos males e da crise mundial: a tirania exorbitante do sistema financeiro sobre a vida política através de uma poderosa oligarquia que, por falta de regras, usa as instituições em favor de si mesma, impedindo o funcionamento saudável do sistema produtivo e em permanente confronto com o interesse público.
Quem são eles, quais os seus privilégios, que leis os protegem e onde se escondem? Eis uma questão maior que aqueles que conhecem a resposta não podem responder, tal é a dimensão dos interesses em jogo. Esse jogo perverso chegou tão longe que alcançamos o fim da linha: nem o Brasil, nem os bancos aguentam mais.
A crise aponta também para uma agenda positiva. O Banco Central independente é um objetivo imediato que devemos buscar a curto prazo, não sem antes considerar que de nada adiantam as meras formalidades jurídico-administrativas.
O governo Castello Branco instituiu no Banco Central uma diretoria independente, mas o governo Costa e Silva transformou as conquistas em letra morta, depois sacramentada pela administração seguinte. E ninguém protestou.
Talvez por essa razão o ex-presidente Itamar Franco tenha visto com desconfiança a independência do BC, porque temia seus desígnios. Se não houver, portanto, um consenso tácito entre os principais atores políticos -junto com os três Poderes federativos- de que precisamos institucionalmente fechar as torneiras, jamais alcançaremos a tão esperada sustentabilidade econômica, que irá nos garantir estabilidade política e bem-estar social.
Isso porque de nada adianta fechar as magras torneiras de um orçamento desequilibrado durante o dia se, à noite, acordos políticos fazem jorrar a grande turbina do Banco Central.
Fixar as regras do enfermo sistema financeiro, controlar os grandes e proteger os pequenos, eis uma decisão inadiável que brotou da crise recente e que não teria surgido sem a ajuda dessa parteira natural das grandes mudanças.
Ficará na história a memorável foto dos funcionários abraçando o banco, nosso guardião da moeda, e cantando o hino nacional. Se o sistema financeiro internacional tivesse a coragem de fazer o mesmo com os fluxos clandestinos que lavam dinheiro e alimentam os paraísos fiscais, boa parte de nossos problemas internos estariam também resolvidos.
Por trás do episódio doméstico existe, porém, um grave ensinamento: a desordem é federativa e as identidades regionais reforçam há décadas a anarquia financeira, pois as grandes lideranças nacionais são reféns de seus interesses locais e particularistas. Afinal, o voto é estadual e municipal, e o Brasil, apenas uma abstração longínqua, frágil e dependente de uma vontade comum.
O pivô da crise não foi apenas o Banco Central, nem o senador Antônio Carlos Magalhães, nem o presidente, mas as oligarquias financeiras e as fortalezas bancárias estaduais, sempre prontas a pressionar o Tesouro e o contribuinte. O novo pacto federativo passa por um inevitável encontro de contas, sempre postergado, cujo princípio maior deve ser a equidade e a responsabilidade na alocação dos recursos a partir de regras comuns.
Abaixo a lei do mais forte, que favorece também os mais espertos e os mais afoitos e que tende a polarizar conflitos malresolvidos entre o Norte e o Sul. O argumento impetuoso do senador, anunciado semanas antes, foi tão forte contra o Banespa quanto em favor da Bahia. O presidente, nesse processo, é o árbitro solitário que procura avançar segundo a arte do possível, sempre partilhando a crise com o grande público.
Foi com essa dose de sutileza e malícia que se implantou o real, seguindo uma estratégia chinesa de avanços continuados e pequenos recuos. Afinal, como sociólogo, ele sabe que o sistema financeiro é o nosso calcanhar de Aquiles. Ele é também um democrata convicto que acredita no papel transformador da sociedade e da política.
Esse presidente gradualista e negociador às vezes se irrita quando se recusa a missões cesaristas e suicidas, como as que levaram ao fim de Vargas e à renúncia atabalhoada de Jânio Quadros. É melhor ter um presidente do que ter um imperador.

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