São Paulo, terça-feira, 29 de agosto de 1995
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A velha esquerda e a nova direita

TARSO GENRO

O que a intelectualidade convencionou chamar de crise da pós-modernidade -a fragmentação da sociedade burguesa tradicional, a superalienação no processo do trabalho em contraposição à totalidade virtual ``midiática"- na verdade não só revela o surgimento de uma nova estrutura de classes ``incluídas", mas também sugere o início do fim do indivíduo forjado pela Ilustração e pelo Iluminismo. Refiro-me aqui às classes incluídas porque é dos conflitos entre elas que nascem as soluções por reformas ou revoluções.
Uma esquerda que queira deixar de ser velha deve pensar no perfil do novo mundo do trabalho no mínimo com uma projeção de dez anos. Na ``ponta" organizada da sociedade -em um futuro imediato- serão quase irrelevantes as demandas do proletariado tradicional, que se tornará cada vez menos importante como fator de acumulação econômica e como poder de mobilização social estratégica.
As novas classes trabalhadoras que surgem da terceira revolução da ciência e da técnica, juntamente com milhares de empreendedores médios e pequenos, integrados em um processo de produção cada vez mais horizontalizado, serão os novos elementos vitais da resistência antimonopolista e antibarbárie. A base social com força política e capaz de democratizar o Estado na ``sociedade do conhecimento" emerge dessa nova ordem industrial.
A individualidade do futuro já está nas ruas. Dentro das nossas casas, com nossos filhos e em todas as classes. Sua racionalidade está articulada com o videogame, sua solidariedade é tribal, sua noção de totalidade é ``internética" e ``televisiva" e sua noção do ``outro" é mediada pelo cerco dos excluídos.
Estes os amedrontam, seja na saída do escritório computadorizado onde trabalham ou nos ``shoppings" da periferia. Eles só rompem seu ``autismo social", como diria Hans Magnus Enzensberger, quando compartilham alguma forma da ``guerra civil não-declarada".
A velha esquerda teima em não se dar conta dessas mudanças. Assim ela se torna cada vez mais monótona, redundante, corporativa e não desconfia do porquê a sociedade não a escuta.
O neoconservadorismo chega a sorrir para o militarismo nacionalista de extrema-direita que nos jogou nos cárceres quando defendíamos os mesmos valores que nos movem hoje: o humanismo e a igualdade. A nova direita, que muda só o discurso para sustentar os velhos privilégios da dominação, tem solução!
Consegue totalizar sua relação com a sociedade pelos grandes meios de comunicação: a falta de solidariedade e o egoísmo tornam-se ``liberdade"; a ausência de leis reguladoras, que formaram o cerne das sociedades modernas, torna-se ``desregulamentação para a eficiência"; as políticas públicas para repartir renda tornam-se insossas ``comunidades solidárias"; as esmolas humilhantes tornam-se ``políticas compensatórias".
Por que a esquerda perde terreno? Porque a sua cultura, que fundamenta sua inserção política, é voltada para a sociedade burguesa clássica em um mundo cujo centro econômico e político era a fábrica da segunda revolução industrial. Mas essa não terá mais nenhuma centralidade em alguns anos e dissolverá cada vez mais rapidamente sua cultura originariamente integradora no espaço virtual da tragédia pós-moderna.
Nem os trabalhadores tradicionais suportam mais os chavões da velha esquerda, apascentados pela televisão colorida e hipnotizados pelo medo da exclusão. Para recompor sua relação política com a sociedade a esquerda poderia compreender que se dirige, agora, para homens em desintegração passiva, que só respondem quando atingidos como indivíduos.
Em outra hipótese, a esquerda dialoga com um novo conjunto de trabalhadores -terceirizados em serviços, encerrados em frias câmaras de compensação, ``computadorizados" pelo processo do trabalho-, trabalhadores dotados de um outro universo cultural, cuja mediação com a realidade não é mais o torno, mas o vídeo.
Ou a esquerda vai se tornar semeadora de ódios explosivos e sem vocação de poder ou vai gerar uma política voltada para esse novo mundo, onde o futuro se decide. Apresentará, então, um programa capaz de seduzir essas novas gerações de trabalhadores -autônomos ou não-, os novos empreendedores da terceira onda, bloqueados pelos monopólios que gerenciam a globalização econômica que já houve.
Ou a esquerda apresenta o seu projeto de globalização cooperativa, a partir da ótica dos setores mais desenvolvidos do mundo do trabalho, ou ela afirmar-se-á como nova força conservadora, abrindo assim o espaço ideal para a consolidação da nova direita.
O espaço político para os excluídos não se realiza sem a pressão destes, mas o processo econômico-social que os integra só pode ser orientado a partir das classes incluídas, que realizam a produção, forjam a cultura e interferem na configuração do Estado. Assim fez o proletariado nas suas revoluções (depois degeneradas) e nas suas reformas (democráticas) do Estado a partir da República de Weimar.
José Dirceu, o novo presidente do PT, passa a ser o nosso dirigente máximo em uma hora crucial. Em uma hora em que nem os mais fiéis de cada setor da esquerda conseguem disfarçar o tédio com os velhos chavões: lamúrias sem propostas, agregação em torno de palavras de ordem corporativas, acusações ao ``inimigo" nas próprias fileiras no crepúsculo do taylorismo sem retorno.
Cabe a José Dirceu orientar um novo equilíbrio político interno em nosso partido, potencializando a contribuição de todas as nossas correntes -sem exclusão-, mas, sobretudo abrindo uma nova relação com a sociedade. Compreendendo-a, para que possamos novamente ser compreendidos: para reformar a economia e a cultura, para reformar o Estado e a política.

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