São Paulo, sábado, 2 de setembro de 1995
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A hora e a vez dos subdesenvolvidos - 2

RUBENS RICUPERO

Os anos de 60 a 80 tiveram mais do que sua dose habitual de conflito: maio de 68, guerra do Vietnã, terrorismos, ditaduras militares, Nicarágua, Angola, Afeganistão, exacerbação da Guerra Fria. Não é de surpreender, pois, que o conceito mesmo de desenvolvimento passasse a refletir a idéia de oposição e luta.
No Brasil do "milagre econômico", o problema não é mais crescer aceleradamente, mas indagar quem se beneficia com esse crescimento. Entre os que, a pretexto de deixar o bolo crescer, querem guardá-lo quase todo para si e os favoráveis a começar a divisão antes que a farinha e a gema se misturem, cavou-se um fosso onde ainda hoje se precipitam os intentos de pactos e entendimentos sociais.
Em lugar da doçura e da sensualidade em tom menor da bossa nova, triunfo de uma classe média intelectual e sofisticada, as garras agressivas do carcará que "pega, mata e come", o chamado revolucionário de "quem sabe faz a hora, não espera acontecer". As introspecções sutis de Clarice Lispector são afogadas pelo jorro de sangue do "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca.
Quando as duas crises do petróleo e o colapso da dívida paralisam até o crescimento bruto do capitalismo "faroeste antes da chegada do xerife", vai para o ralo o frágil consenso estabelecido pelos militares com empresários e tecnocratas. Novos insatisfeitos engrossam as fileiras de trabalhadores e intelectuais, alienados desde o início pela repressão social e cultural do regime militar.
Passa-se a pôr em dúvida a possibilidade mesma do desenvolvimento dentro do "status quo". Postula-se a transformação revolucionária das estruturas de propriedade da terra e da produção como condição prévia para tornar o desenvolvimento possível e não apenas justo.
A velha oposição do século 19 europeu entre reforma e revolução reaparece com força nesses anos, não só no processo interno brasileiro, mas também no debate internacional sobre o desenvolvimento.
Escritores como Franz Fanon, economistas como Raul Prebisch, primeiro na Cepal, mais tarde na secretaria geral da Unctad, popularizam a visão de um mundo onde as economias centrais se enriquecem às custas da transferência de riqueza da periferia.
Serve de principal corrente transmissora dessa riqueza o mecanismo da deterioração dos termos de intercâmbio, por meio do qual matérias-primas de preços cada vez mais aviltados têm de ser trocadas por manufaturas sempre mais valorizadas.
É como se a "plus-valia" que engorda o capitalista individual à custa do operário adquirisse dimensão coletiva entre nações capitalistas e operárias. De que forma romper o círculo infernal de um sistema que tende a autoperpetuar a exploração e o subdesenvolvimento?
A resposta de Prebisch privilegia a industrialização promovida pelo Estado por meio do processo de substituição de importações, enquadrando e limitando o papel do mercado.
Estamos a anos-luz de distância dos primeiros teóricos norte-americanos do desenvolvimento, encarado como um processo linear e progressivo de acumulação de capital. O Rostow do "Stages of Economic Growth", que descreve um processo uniforme e universal no qual todos os países percorrem, com maior ou menor velocidade, as mesmas etapas até chegar à decolagem ou "take off", está para o Prebisch da Unctad ou para o Fernando Henrique Cardoso da teoria do desenvolvimento como os iluministas do século 18 estão para os marxistas do 19.
Nesse clima, coincidindo com o signo zodiacal do movimento de 64, nasce a Unctad, como contraponto a FMI e Banco Mundial, criaturas de Bretton Woods (1944), e ao Gatt (1947). Vinte anos após o fim da Segunda Guerra seria tempo suficiente para tentar reformar o sistema econômico reconstruído pelos EUA e Inglaterra.
Partia-se, logicamente, da reforma do comércio mundial. Se o atraso econômico não era apenas um estágio histórico, a infância dos países, mas o subproduto de um sistema comercial perverso, seria preciso mudar o sistema. A chave não era a ajuda, mas o comércio -"trade, not aid", como se dizia então. Não, porém, o comércio tipo "business as usual", mas um comércio reformado.
Com a participação, desta vez, das dezenas de nações recém-independentes da Ásia, África e Caribe, tratava-se, nada mais, nada menos, de edificar, com maiúsculas, uma Nova Ordem Econômica Internacional.
Os nostálgicos daquele tempo de ilusões dizem hoje, com melancolia, que, em vez disso, temos, sim, uma Nova Ordem, mas uma ordem do poder, uma desordem estabelecida.
Será certo? Ou o mais correto é reconhecer que mudaram os tempos e com eles mudou a visão do desenvolvimento? O desafio continua. Ao contrário do que diz a música, o sonho não acabou. Apenas mudou.

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