São Paulo, sábado, 2 de setembro de 1995
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América Latina é hoje nau de insensatos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Qualquer história da imprensa mundial na primeira metade deste século há de registrar a invenção, com "Time Magazine", da revista-jornal por excelência.
"Time" criou no mundo todo versões nacionais, como são no Brasil "Veja" e "Istoé". Quero deixar registrado aqui, no entanto, para algum futuro historiador, que uma das sementes plantadas na revista "Time" daqueles tempos fundadores não vingou em nenhuma das revistas-filhotes nem durou muito tempo na própria "Time".
Refiro-me a uma seção fixa, que se chamava "The Hemisphere" e cuidava, especificamente, da América Latina. Eu gostava dessa seção, quando a lia, coisa de uns 40 anos atrás. Como nada sabemos, no Brasil, dos demais países ibéricos que nos cercam (e somos pagos na mesma moeda), aquele departamento era útil resumo do que ocorria do sul dos Estados Unidos à Terra do Fogo conferindo, assim, uma certa "realidade" ao vago conceito, inventado pelos franceses do tempo de Napoleão 3º, de um bloco americano autônomo, impregnado de "latinidade", independente da pujante América inglesa.
A página "The Hemisphere", em suma, consolidava, pelo menos graficamente, esse gigante mole e informe que fala espanhol, português e um pinguinho de francês no Haiti. No fundo, no fundo, acho que "Time" encerrou a página que nos dava essa consistência por falta de interesse dos leitores, ou talvez mesmo devido à hostilidade dos próprios países latino-americanos.
A América Latina não gosta do nome que tem porque não gosta de ser aquilo que é. São países que se consideram, todos e cada um, em eterna formação e em busca de uma identidade. Como já disse não sei quem, todos eles sabem muito bem a identidade que têm -mas não gostam dela. Preferem, por isso, fingir que ainda não têm nenhuma.
Antigamente os países do hemisfério queriam parecer com a França, ou, uns poucos, com a Inglaterra. Hoje querem todos parecer com os Estados Unidos. A desgraça é que a cada decênio que passa mais se parecem uns com os outros. No momento parecem uma penca de gêmeos -como aquelas irmãs Dionne do Canadá, lembram-se? Ou talvez pareçam, isto sim, com a família Addams, criada pelo finado humorista Charles Addams.
O que é que há com "The Hemisphere"? A começar pelo pior no momento, o México, com o povo espoliado por malfeitores nos mais altos postos da República, e a terminar na inquieta Argentina, o que vemos é a Venezuela de um presidente Perez derrubado e de bancos que continuam a desmoronar às mãos de um desnorteado presidente Caldera, e a Colômbia, em que o próprio presidente Samper é suspeito de haver ganho a eleição com dinheiro do tráfico de cocaína.
No Peru, onde pelo menos o meio ditador Fujimori foi reeleito pelo povo, vigora um regime de classificação difícil e democracia precária, enquanto no Chile, em geral mais equilibrado e sério que seus "hermanos" latino-americanos, o Exército desmoraliza quando bem lhe apraz o poder civil e parece haver institucionalizado a perpetuidade física e política desse Pinochet inextinguível.
Acho que mesmo os grandes intelectuais latino-americanos, escritores, pensadores que outrora saíam do gabinete para tentar escrever o poema ou romance do próprio país, cansaram de tentar domar personagens tão insuportáveis e situações tão intratáveis como as do "Hemisphere".
Não há mais o intelectual elaborando a pátria como um livro principal -caso do cubano José Julian Martí. Ou do primeiro presidente civil da Argentina, Domingo Sarmiento, autor de "Facundo". Ou ainda de Rómulo Gallegos, que ficou famoso com o romance "Dona Bárbara" e que, empossado presidente da Venezuela em fevereiro de 1948, foi derrubado por um golpe militar em novembro do mesmo ano.
No Brasil, a principal tentativa de chegada ao poder de um criador de literatura foi a de José Américo de Almeida, fundador do romance nordestino com "A Bagaceira" e candidato à Presidência da República na eleição que não houve, de 1937.
O ficcionista, antropólogo e ensaísta brasileiro que ainda é capaz de chegar à Presidência da República (apesar de, como diz, preferir a coroa de imperador) é Darcy Ribeiro. No entanto, ao ler no mais recente número de "Discursos Acadêmicos", publicação da Academia Brasileira de Letras, o discurso de posse de Darcy Ribeiro na dita ABL, vejo como mesmo esse cultor da idéia de uma América Latina fadada a grandes destinos anda meio distante, em suas meditações, da pátria continental com que sonhava Bolívar.
Darcy tomou posse de sua cadeira na Academia em abril de 1993, bem antes da grave crise de saúde que o levou ao hospital e à sua por assim dizer espetacular fuga da UTI que o transformou de repente em herói nacional, "superman". Tomou a foice das mãos da Morte e deixou para trás aquele inferno de suspiros e gemidos que é qualquer Unidade de Tratamento Intensivo.
Cerca de um ano depois de ser feito imortal acadêmico, Darcy resolveu conquistar a imortalidade a tapa, na sala de espera da morte. Viva ele. Estive lendo agora seu discurso de posse e nele encontro os temas que ocuparam Darcy quando, ao sair da UTI, se dirigiu ao país como um profeta Daniel saído da cova dos leões.
Disse Darcy, no discurso do Petit Trianon, que o Brasil é "uma romanidade tardia, tropical e mestiça. Uma nova Roma, melhor, porque racialmente lavada em sangue índio, em sangue negro. Culturalmente plasmada pela fusão do saber e das emoções de nossas três matrizes; iluminada pela experiência milenar dos índios para a vida no trópico; espiritualizada pelo senso musical e pela religiosidade do negro".
Darcy é, entre os brasileiros, um dos maiores conhecedores da América Latina em geral, inclusive porque em países como o Uruguai e o Peru curtiu períodos de exílio. Mas na sua evocação atual o Brasil ocupa o palco inteiro.
Sua Roma tardia parece falar cada vez mais uma só língua, português. Vamos ver se na carreira que acaba de iniciar, de articulista da Folha, Darcy dará alguma eventual olhadela a este continente que parece desmoronar-se a cada dia que passa.
A América de Vargas Llosa me parece exclusivamente peruana e, mais ainda, peruano-espanhola. O passado indígena do Peru, com suas glórias incaicas, não diz nada, ou muito pouco, ao autor de "Peixe na Água".
Já mencionei nesta coluna que, quando nos encontramos na Folha, em almoço que o jornal lhe ofereceu, falei a Vargas Llosa dos incas e ele quase fez uma careta. Disse que formaram sem dúvida uma civilização, mas fechada e sanguinária. Fiquei espantado, e ia falando no banho de sangue com que os espanhóis acabaram com a civilização já tão estruturada dos incas mas vi logo que ia dar murro em ponta de faca. Borges, que eu me lembre, perdeu tanto tempo com os índios que um dia dominaram o território argentino quanto Guimarães Rosa com tupis e guaranis, isto é, nenhum.
A verdade é que "nuestros países" estão cada vez menos preocupados com aquilo que um dia foram. Talvez por estarem tentando descobrir aquilo que um dia serão, perspectiva algo aflitiva se levarmos em conta o que são no momento, por exemplo, a Venezuela e a Colômbia.

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