São Paulo, sábado, 2 de setembro de 1995
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Religião e escola pública

HENRY I. SOBEL

Sou contra, categoricamente contra. Tal afirmação, vinda de um clérigo, pode parecer um disparate, um contra-senso, até uma heresia. É por isso que exige uma explicação.
Não há dúvida de que a educação religiosa é importante. Em nossa sociedade conturbada pela imoralidade e pela violência, instilar na mente das crianças a noção de Deus só pode trazer resultados positivos. A educação religiosa transmite valores éticos, dá à criança um esteio moral em meio ao turbilhão da vida moderna, acrescenta uma dimensão espiritual à vivência humana.
Não há nada mais saudável para o desenvolvimento de uma criança do que ser conscientizada de que existe algo maior que o seu próprio eu. As metáforas bíblicas trazem consigo valiosas lições existenciais. Dizer que "o homem foi criado à imagem de Deus" implica que cada ser humano é digno de respeito e consideração, pois ele traz dentro de si uma centelha divina do Criador.
Ao aprender que toda a raça humana provém de um único homem, Adão, a criança capta o conceito da igualdade entre todos os homens e aprende também a rejeitar qualquer idéia de superioridade racial. Os ensinamentos proféticos de compaixão para com os pobres e desprivilegiados incutem na criança as noções básicas de justiça social.
Entretanto, a escola pública é um ambiente inapropriado para a instrução religiosa. Para que o ensino religioso pudesse cumprir seus objetivos, seria necessário que os professores fossem dotados de altíssimo grau de sensibilidade, discernimento e equilíbrio, a fim de não imporem, até mesmo subliminarmente, sua própria linha religiosa aos alunos.
Se nós, que participamos ativamente do diálogo inter-religioso, levamos anos e anos para aprender quais os conceitos que são realmente comuns a todas as religiões e quais aqueles que são incompatíveis com os preceitos de um determinado credo, como se pode esperar que um professor da rede pública -mal-remunerado e mal-preparado para lecionar as matérias normais do currículo escolar- consiga entender, por exemplo, que ensinar uma criança judia a seguir os exemplos de Jesus é contrariar os ensinamentos da fé judaica?
E, mesmo que um professor fosse capaz de apresentar o conceito de um ser superior no contexto mais objetivo possível, sem vinculá-lo a nenhuma religião específica, estaria desrespeitando o direito daquelas famílias que optam conscientemente por dar a seus filhos uma educação ateísta ou agnóstica.
O artigo 210 da Constituição estipula que "o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". A ressalva "de matrícula facultativa" não é de natureza tão democrática quanto possa parecer à primeira vista.
Ao tornar o ensino religioso obrigatório nas escolas públicas e permitir a alguns alunos não assistirem às aulas de religião, cria-se uma situação em que essas poucas crianças se sentirão estigmatizadas, "diferentes" das demais, justamente numa fase da vida em que é tão importante para a criança sentir-se plenamente integrada ao grupo.
O pluralismo religioso, étnico e cultural é um dos maiores tesouros do nosso país. É inadmissível que algumas crianças, por professarem um credo que não é o da maioria, sejam colocadas na incômoda posição de serem vistas -e se verem a si mesmas- como estrangeiras em sua própria pátria.
Para ser autenticamente democrática, uma nação não pode se limitar a atender aos interesses da maioria. É preciso que se preocupe igualmente em respeitar os direitos das minorias.

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