São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Gregori propõe indenizar 111 do Carandiru

CYNARA MENEZES; ALEXANDRE SECCO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O autor do projeto dos desaparecidos, José Gregori, 64, considera que os familiares dos 111 mortos em 1990 no presídio do Carandiru, em São Paulo, e os parentes de militares mortos em choques com os grupos armados de esquerda também têm direito de receber uma indenização do Estado.
"Se o Estado os colocou em situação de risco, se tinha de tomar providências e não tomou, cabe a indenização", disse o advogado, cuja nova missão no governo é preparar um projeto amplo na área dos direitos humanos, encomendado pessoalmente pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
Chefe de gabinete do ministro da Justiça, Nelson Jobim, amigo de FHC, Gregori é católico praticante e fã do canto gregoriano. Define sua luta em defesa dos torturados como "um apostolado".
Tem como maiores ídolos um advogado com nome de santo -Santiago Dantas, ministro da Fazenda de João Goulart (1961-1964)- e um religioso -d. Paulo Evaristo Arns, a quem conheceu quando entrou para a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.
"Naquela época, a expressão 'vá se queixar ao bispo' era literal para mim. Era aonde iam todos que tinham problemas. A sociedade civil era eu", diz Gregori, que presidiu a comissão por dois anos e defende a indicação de d. Paulo para o Prêmio Nobel da Paz.
O dia 1º de abril de 1964 ainda tem cores tão vivas em sua memória como o Chevrolet em que andava pelas ruas vazias do Rio pós-golpe, ao lado do então deputado Rubens Paiva, desaparecido em 71 (sua viúva, Eunice, é uma das beneficiadas pelo projeto).
Na véspera, havia estado com o amigo Santiago no Palácio das Laranjeiras e encontrado um Jango exausto e insone, mas que o surpreendeu pela "extrema polidez" ao se levantar da cama só para cumprimentá-lo de pé.
Os primeiros anos do regime são definidos por Gregori como uma fase "risonha e franca". O período "ditatorial", de força, diz, só começaria depois do AI-5 -Ato Institucional que suspendeu as liberdades políticas em 1968.
A resistência só teria início em 1972, com as primeiras notícias de tortura chegadas à casa com piscina e jardim, onde vivia na vila Nova Conceição (zona sul de São Paulo) com mulher e três filhas, e onde se reunia com um pequeno grupo "socialista democrático".
Foi naquelas reuniões que o advogado descobriu ser possível resistir ao regime militar e se manter fiel à índole de pregador. "Nunca entraria na luta armada". A seguir, os principais trechos da entrevista de José Gregori à Folha , concedida na quinta-feira passada:

Folha - O projeto resolve o problema dos desaparecidos?
José Gregori - Eu acho que o projeto é uma entrada vigorosa no sentido de solucionar o problema, mas é claro que muita coisa poderá ficar pendente.
Folha - As famílias, como a do Carlos Marighella, criticam o projeto porque deixou muita gente de fora.
Gregori - A questão é que a mecânica que eu segui no projeto foi baseada em dois eixos: a Lei da Anistia e abranger os casos em que a responsabilidade do Estado fica evidente. Quando o Estado prende e a pessoa some, você tem quase certeza de que quem deteve sumiu com essa pessoa. O dano fica evidente e precisa ser compensado. E a Lei da Anistia coloca uma pedra no passado.
Dentro desses dois eixos, eu fiz o máximo possível, por meio de uma lista, que é uma coisa mais corajosa do que mandar para o Judiciário reconhecer, o que seria demorado e poderia refletir a visão ideológica do juiz.
Folha - O senhor se referiu à evidente responsabilidade do Estado. Isso também não acontece nos casos de tortura?
Gregori - Sobre os casos que não estão na lista, uma comissão (prevista no projeto) vai analisá-los e poderá incorporá-los.
Folha - Faltou coragem para colocá-los na lista?
Gregori - Na realidade, a questão desse tipo de morte envolve um mínimo de prova, porque quase na maioria dos casos foi montada uma versão que você precisa desfazer. E é mais adequado fazer isso perante uma comissão.
Folha - Os 111 mortos do Carandiru estavam guardados pelo Estado. Aí também não é preciso demonstrar coragem?
Gregori - Essas famílias, em tese, poderão acionar o Estado. Se a família conseguir provar que a pessoa morreu em função do comportamento do Estado, o Judiciário vai mandar pagar indenização.
Folha - E os militares? Também têm direito a indenizações?
Gregori - Pelo fato de serem militares, está prevista a hipótese de apoio à família no caso de morte em serviço. Mas nenhum deles está proibido de entrar com uma ação no Judiciário.
Se o Estado os colocou em situação de risco, se, na realidade, tinha de tomar providências e não tomou, cabe a indenização.
Folha - Se o Estado desaparecesse hoje com suas três filhas, daqui a 20 anos o senhor acharia justo receber uma indenização, mas ter negado o direito de investigar as circunstâncias?
Gregori - Prefiro responder com as palavras de quem viveu a situação. Uma viúva me disse: "Olha, remoer o passado não me devolve a vida do meu marido".
Folha - Mas por que esse Estado, que tem coragem para admitir que matou, não tem coragem para investigar as circunstâncias em que isso ocorreu? É medo dos militares?
Gregori - O problema é que existe o impedimento da Lei da Anistia. (Modificar a lei) Desencadearia a reabertura de um processo que a Lei da Anistia tamponou em benefício de todo o processo político brasileiro.
Folha - Os brasileiros não estão interessados nesse caso?
Gregori - Como sociedade, como conjunto, eu tenho a impressão de que não. Mas não podemos desmerecer o trabalho de investigação que tem sido feito em nível não-governamental.
Folha - A repressão brasileira foi muito sangrenta?
Gregori - Do ponto de vista aritmético, as cifras da Argentina são extraordinariamente maiores. Ficamos em terceiro lugar, atrás do Chile.
Folha - O senhor acha que os militares brasileiros não eram tão duros?
Gregori - É possível que sejamos mais pacíficos. E, aqui, tivemos a sociedade civil, a imprensa que não se dobrou, a Comissão Justiça e Paz.
Folha - Esse período não deixa um trauma no país, não seria o Vietnã do Brasil?
Gregori - É claro que os efeitos de uma violência estatal sistemática deixam marcas que duram gerações. É difícil. Você pode virar a página, mas não fecha o livro. Isso aumenta o dever de agir no sentido de superar esses traumas. Mas não é positivo ficarmos arranhando as feridas. Temos de mirar o futuro.

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