São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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O zumbi

MARCELO LEITE

Um dos programas mais desagradáveis da TV dos últimos tempos foi ao ar na última terça-feira. Refiro-me à entrevista do ex-presidente Fernando Collor ao programa "SBT Repórter", que estreou com enorme barulho e escassa substância. Ou, como se dizia no tempo em que as polêmicas eram mais interessantes, gerou muito calor e pouca luz.
Foi um assunto obrigatório da semana, agora que o caso ACM-Econômico arrefeceu (inexplicavelmente, porque parece que o neocoronel vai conseguindo tudo o que queria para estatizar o prejuízo). Em matéria de destempero, ACM nunca foi mesmo páreo para Collor, um de seus ex-aliados.
Mais importante do que esse campeonato subterrâneo de baixaria é a ressurreição do debate sobre supostos abusos da imprensa na tragicomédia Collor. O colunista Luís Nassif, da Folha, saiu na frente com um artigo vigoroso, anteontem, sob o título "Collor e o exorcismo da imprensa".
A expressão "exorcismo" veio bem a calhar, embora Nassif pretendesse com ela apontar para a necessidade de purificar a imprensa de métodos demoníacos. O repórter Roberto Cabrini comportou-se como se tivesse invocado um morto-vivo das profundezas do inferno (Miami) e o enfrentasse com crucifixos e réstias de alho (recortes de jornais e trechos do livro do irmão delator).
Collor resistiu, firme, nos limites do que parece conceber como firmeza -empáfia, impropérios, vocabulário pedante, olhos esbugalhados. Um Jânio piorado e menos engraçado.
Nassif censurou o programa por reviver a sanha inquisitorial da imprensa na decadência collorida, que não se deteve diante da dignidade da pessoa nem da falta de comprovação factual para as revelações mais escabrosas.
Na opinião de Nassif, "criou-se um clima de linchamento propício ao afloramento dos sentimentos mais mesquinhos, um festival de exibicionismo. A cada dia era necessário produzir mais escândalos, como se a mera exposição de um amplo sistema de propinas não fosse suficiente".

Rei civil
Não era ombudsman na época, mas editor de Opinião da Folha. Retrospectivamente, concordo em que ocorreram no noticiário -de todos os veículos- muitos abusos. Não tenho porém uma opinião tão dura quanto a de Nassif sobre a imprensa, por várias razões:
Collor era presidente da República, que no plano simbólico assume a feição de um rei civil e não pode pretender um grau de privacidade como o de qualquer cidadão;
A conduta moral e sexual de um presidente pode ter valor apenas relativo para jornalistas esclarecidos, mas adquire grande importância para muitos leitores, portanto o repórter ou editor não pode omitir o que descobre sobre isso (ainda que haja modos e modos de noticiá-lo);
As principais denúncias-baixaria não foram feitas por qualquer um, mas por ninguém menos do que o irmão do presidente;
O próprio Collor buscava, com sofreguidão, a exibição pública de sua vida privada, ou de sua encenação -a Casa da Dinda, o cooper, a aliança de casamento foram alguns dos "factóides" oferecidos à larga para a imprensa, boboca;
A atmosfera de dissolução moral que esses escândalos produziam revestia-se de verossimilhança crescente, pois coincidia com a dimensão mais e mais acabrunhante da rede de extorsão que se descobria à sombra do Planalto.
Tudo isso, certamente, não justifica os muitos compromissos com a objetividade que alguns jornalistas se permitiram. Apresento essas razões em favor da idéia de que nada há de errado em Cabrini perguntar tais coisas (a não ser seu duvidoso estilo inquisitorial). Ainda mais quando se trata de um presidente que caiu tão baixo quanto Collor.
O problema maior, e aí dou inteira razão a Nassif, é que o repórter nem de longe foi tão intrusivo e persistente em relação ao que de fato importava, o propinoduto que ligava as empresas de PC Farias à Casa da Dinda. Toda a ênfase do programa, que poderia ter esmiuçado didaticamente o sistema, recaiu sobre o histrionismo e os palavrões do ex-presidente.

Morto e enterrado
Desconfio de que tanto Cabrini quando Nassif estão às voltas com zumbis.
O morto-vivo do SBT é "aquele que pode voltar", como voltam as múmias e voltou Getúlio Vargas. Uma mistificação evidente, no momento. A memória do eleitorado não se apaga tão facilmente, como de resto mostra a pesquisa de opinião encomendada pelo programa.
Assim como no bicho-papão, também não acredito no Collor pioneiro da modernidade, tal como aparece no final do artigo instigante de Nassif.
Foi somente mais uma esperteza (ou intuição privilegiada) de Collor aderir ao credo de Margareth Thatcher no ano da queda do Muro de Berlim. O que de mais moderno havia em seu governo eram jet-skis. No mais era só abuso de poder, desmandos, irresponsabilidade administrativa, megalomania. A pior forma de atraso, comandada pelo pior tipo de oligarca: fantasiados de modernos.
A história não tem justiça alguma a fazer com Collor. Por este motivo o programa do SBT não chega a ser uma injustiça -foi só uma noite desagradável, com um personagem desagradável. Ganhar uns pontos de ibope com tamanha abjeção não terá nunca, na minha opinião, o poder de confundir a memória da sociedade.
Quando muito, poderá irritá-la, como aos espectadores.

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