São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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A estilística refinada de uma contista

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Não se deixe enganar pela capa, de um mau gosto inebriante, nem pelo título, muito aquém da obra, esotérico demais. Com "Pente de Vênus - Histórias do Amor Assombrado", de Heloisa Seixas, você estará diante de um belo e contundente trabalho de ficção.
Carioca, 42 anos, Heloisa reúne no conjunto de seus 14 contos o refinamento estilístico e a densidade imagística próprios a um autor maduro, veterano, não à estreante que ela é.
Certamente há irregularidades -alguns momentos melhores que outros- e não se trata de uma obra marcada pela inovação formal. Boa parte das características tradicionais do conto que os teóricos em geral ressaltam está contemplada: unidade dramática, temporal, espacial e de tonalidade, revelação de um enigma apenas no final do texto, entre outras.
O que encanta no livro, porém, é o domínio que a autora demonstra ter sobre os elementos que utiliza. Na composição de sua linguagem, com efeito, não há hesitações.
Para a seleção de ícones estilísticos, por exemplo, Heloisa se impõe desde o início na guerra que todo escritor sério trava com os recursos que tem à disposição. Nesse embate, consegue eleger e expor uma simbologia singular: tecidos, espelhos, mesas toscas, corredores de todo tipo, plantas, rugas, o mar -elementos como esses são recorrentes em sua escrita.
O tom global é decididamente sóbrio, não-coloquial. Em praticamente todos os contos -eis mais uma determinação autoral-, explora a técnica do "flashback, a fusão de sonho e realidade, a alternância de narradores (ora em primeira pessoa, ora em terceira, por aí afora) e o uso de vozes interiores aos personagens.
Os protagonistas, com raras exceções, são mulheres amadurecidas que vivem situações-limite ou reconstituem, de modo fugaz, estágios anteriores de suas vidas, sem contudo superá-los no presente da ação. Não produzem, entretanto, lamentações lacrimosas, essas mulheres. O que elas tentam, no fundo, é administrar solenemente sustos e assombrações.
Assim acontece, por exemplo, com Ana Clara, no conto que dá título ao livro. Aos 70 anos de idade, avó, ela repassa os poucos, mas assustadores, sensuais e decisivos encontros que teve com um homem, os quais, ao final, não ficamos sabendo, com certeza, se foram todos de verdade ou fruto de sua mente -e isso pouco importa, a bem-dizer.
Porém, estamos longe de lidar, aqui, com assombrações do estilo bruxaria, magia ou vivências extraterrenas em geral; graças a Deus (opa!), não se trata de espiritismo, caminhos de Santiago de Compostela ou coisas do gênero.
Mesmo ocultos, por vezes, sob um feixe de forças desconhecidas, o que a autora desfia são acertos de conta -nostálgicos, mas lúcidos, transparentes, mas radicais e, por isso mesmo, intermináveis- com as fantasias (realizadas ou não), os desejos submersos, os fantasmas não tragados pelo corpo ao longo de décadas.
Somem-se a tudo isso os cenários descritos com minudência, a elegância de um erotismo bem dosado, as atmosferas as mais ricas e diversas que a autora utiliza -sítios isolados, praias "virgens, Florença, os corredores do metrô de Moscou, Paris, a cabine de um trem em Istambul etc-, e chegamos, sem nenhuma dúvida, a uma das mais promissoras revelações dos últimos anos.

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