São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Oscilações de um quase grande escritor

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Ivan Angelo, 59, ao que parece, não quer cair na síndrome -tão frequente no país- do escritor de um livro só, aquele que só é lembrado por uma obra que "marcou uma geração". E essa é uma das melhores notícias recentes da literatura brasileira, ora em fase de nanismo. A Companhia das Letras acaba de publicar o último livro de Angelo, "Amor?".
Com exceção de uma reunião de contos juvenis, "O Ladrão de Sonhos", lançada em 1994, Angelo não publicava desde 1986 ("A Face Horrível"). Seu livro mais lembrado, "A Festa", é de 1976. Na mesma década, ele lançou "A Casa de Vidro" (1979). Estes dois acabam de ser reeditados pela Geração Editorial.
Trata-se de um escritor bissexto, portanto. Mas isso está longe de ser um defeito: no caso de Angelo, é mais um requisito de seu próprio estilo.
Esse estilo é fragmentário e coloquial, num tom que soa quase displicente, mas por trás há um rigor inequívoco, um trabalho lento de encaixe e depuração. Os livros de Angelo são como colagens de minicrônicas, ou como o software "Windows" dos microcomputadores, que vai descortinando janelas sucessivas ou alternadas.
Em "A Festa" -cujo subtítulo é "Romance: Contos"- essa estrutura tem efeito impressionante. Vai mesclando cenas de violência política a cenas de sexo, passando por diversos gêneros. Há reportagens, depoimentos, diários, minicontos, anotações do escritor, minidiálogos, poemetos.
Intertítulos, longos parênteses, tipografias variadas e espaços em branco sobrepõem essas histórias como lâminas de um leque. O vértice desse leque é um determinado contexto (ou hipertexto) histórico: o regime militar brasileiro, suas torturas e censuras.
Os fragmentos do cotidiano acabam, surpreendentemente, formando assim um "painel de época" -o que se costumava pensar que só as narrativas lineares pudessem fazer.
Mas não é a injunção histórica que legitima a importância de "A Festa", ao contrário do que parecem pensar alguns. É a adequação da forma ao tema e sua execução inventiva. O livro, ao dar apenas vislumbres de seus personagens, como que reflete a perda de qualquer sentido global provocada por um governo autoritário no cotidiano das mais diversas pessoas.
Mostra, em suma, que a individualidade começa nos prazeres e o autoritarismo consiste justamente em estragá-los. Curioso que não tenha sido censurado, mas isso só pode ter sido porque, como diz um personagem, o estilo "é sutil demais para eles".
Nem todas as histórias são interessantes ou bem resolvidas (pois o acúmulo delas tende a diluir o senso crítico em relação a cada uma), mas há uma vivacidade geral. Alguns minicontos são vislumbres luminosos:
"Esta senhora surpreendeu o marido masturbando-se, espreitando-a tomar banho. Ficou tão apaixonada que parou de procurar homens e apaixonou-se de novo por ele. Através da neblina do box do banheiro, adivinhava-o em sua febril ocupação, furtivo caçador. A caça, ansiosa, oferecia o peito ao tiro." Em poucas linhas, um conto magnífico sobre homem e mulher".
Em "Amor?", como se pode adivinhar do título (ruim), Angelo se concentra nessa guerra dos sexos e deixa de lado a política, que hoje já não suscita ardor nenhum.
A qualidade do livro, nesse sentido, está em sua própria despretensão: 121 páginas apenas. Tem o tamanho que deveria ter; maior, se tornaria digressivo e aguado. "A Casa de Vidro" sofre disso: a linguagem às vezes mostra o pulso solto, em sequências enormes de frases separadas apenas por vírgulas -o que é cansativo.
Na forma de um diário, a história de "Amor?" é a de um homem de meia-idade, João, casado, e o fim de sua relação com a amante, Vida. Com grande perspicácia, sugere toda a covardia e paralisia dos homens diante das mulheres.
Mas o maior desafio do livro -que, formalmente, é muito menos ousado do que "A Festa"- é o registro da linguagem: é tratar de sexo sem cair no pedante, no clínico ou no chulo. Angelo adota o coloquialismo paulista e na maior parte das vezes vence o desafio. Às vezes, porém, não funciona: "Na hora do banho tentei me masturbar pensando nela. Nem subiu. Isso passa?" -diz subitamente.
Além disso, na sua fugacidade e modéstia, "Amor?" faz pensar que Angelo ainda não é o grande escritor que poderia ser.

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