São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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Canudos chega à Alemanha

SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

A guerra chegou, finalmente, a esta Alemanha pacífica, em que o militarismo é proibido pela Constituição e em que mesmo as batalhas parlamentares só acontecem uma vez por ano, quando se vota o orçamento. Mas que guerra? A de Canudos, é claro. Não estou querendo dizer com isso que tenha surgido em algum lugar da Alemanha do Sul um arraial semelhante ao de Canudos, em que um santo de camisolão pregue a 3.000 bávaros a destruição da república de Bonn e a restauração da monarquia dos Hohenzollern. Não estou falando analogicamente, mas literalmente. O que chegou à Alemanha foi a nossa guerra de Canudos, completa, com seu Messias, seus jagunços, seus canhões e suas quatro expedições militares.
Ninguém teria dúvidas a respeito se assistisse ao simpósio realizado na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim. Vários intelectuais alemães -Berthold Zilly, Ulrich Fleischmann e Hans Christoph Buch, que moderou o encontro- e quatro brasileiros -Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima, Francisco Foot Hardmann e o autor deste artigo- tentaram dissecar esse fenômeno literário. Foram várias horas de debates, em que o livro foi abordado como romance, como epopéia, como teatro, como reportagem de guerra, como obra científica, como relato histórico, ficando em todos, no final, a impressão de que o livro era tudo isso e não era nada disso e de que, por mais que o estudássemos, não arranharíamos nem sequer a sua superfície.
Foi apenas o mais recente episódio na carreira triunfal de Euclides da Cunha na Alemanha, desde que Bethold Zilly publicou, no fim do ano passado, sua tradução de "Os Sertões".
Berthold trabalha em sua tradução desde que deu os primeiros vagidos. Na idade em que os meninos alemães lêem em Karl May aventuras passadas no Oeste americano, ele vibrava com as aventuras dos jagunços brasileiros. Consta que ele escandalizava os fiéis de seu Bochum natal quando, em vez de cantar hinos luteranos, ele entoava cânticos ao Senhor Bom Jesus, não por ter se convertido ao catolicismo, mas porque eram os hinos que os adeptos do Conselheiro cantavam nas procissões de Canudos. Por amor a Euclides, Berthold leu todos os tratados de geologia e de psiquiatria citados nos Sertões. Pegou seu bastão de peregrino e foi visitar os lugares sagrados da Bahia. Dizem que, quando viu uma represa no lugar outrora ocupado por Canudos, "ubi Troia olim fuit", ele fez num povoado próximo discursos tão incendiários que um padre o acusou de estar possuído pelo espírito do Conselheiro, e que os militares o prenderam por subversão.
Talvez haja alguma fantasia nesses relatos, mas o que é absolutamente certo é que seu trabalho fez sensação na Alemanha. O "Literatur-Rundschau", de Frankfurt, chamou sua tradução de "fabelhaft", fabulosa, o "Tagesspiegel", de Berlim, falou numa realização magistral, "Meisterleistung", o "Vorwãrts" referiu-se a uma "versão luminosa", a "Sddeutsche Zeitung" considerou Zilly "um brilhante tradutor", e o "Kõlner Stadt-Anzeiger" disse que ele "salva para o alemão a força arcaica do original".
Graças a Zilly, Euclides da Cunha, virtualmente desconhecido na Alemanha, está sendo visto como uma verdadeira revelação. Para a imprensa, ele virou um misto de Homero e Heródoto. Estão se fazendo leituras públicas do livro. Seminários análogos ao de Berlim estão se realizando por toda parte.
Sim, todos consideram "Os Sertões" uma obra-prima, mas é evidente que um livro publicado há quase cem anos não pode apaixonar os leitores de hoje somente por seu valor intrínseco. Ele precisa tocar algum nervo atual, sincronizar-se com algum aspecto do "Zeitgeist". O passado que nos fala por intermédio dele precisa de algum modo fazer parte do nosso presente. Em que os alemães de hoje são contemporâneos de Canudos?
Creio que Euclides impressiona, em primeiro lugar, porque meio século antes de Adorno, ele desenvolveu uma espécie de dialética do Iluminismo, em que a civilização não se opõe à barbárie, por ser ela própria bárbara. Para muitos leitores alemães, com efeito, a análise de Euclides não vale só para o Brasil. A violência com que a "modernidade" foi implantada no sertão da Bahia exprime uma característica da modernidade em geral. Ela age em toda parte de modo destrutivo, sempre arrasando estruturas tradicionais e subordinando a vida humana aos imperativos da razão técnico-científica. Dessa convergência básica com o espírito do tempo decorrem muitas outras. A solidariedade de Euclides da Cunha com os vencidos de Canudos encontra eco na simpatia contemporânea por todos os grupos marginais, por todas as minorias oprimidas pela civilização moderna. Sua impossibilidade de compreender o povo brasileiro à luz da ciência oficial -para ela, o sertanejo teria que ser visto como um degenerado, quando na verdade ele era um forte -é interpretada como uma prova da falência, em geral, do pensamento científico. Com isso, Euclides acaba ficando em sintonia com a sensibilidade antimoderna e contra-iluminista que se tornou tão aguda na Alemanha de hoje.
Segundo, o misticismo dos jagunços tem algo de fascinante para uma época que volta a se interessar pela magia e pela religião. De resto, há analogias óbvias entre Canudos e certas manifestações religiosas contemporâneas, como o fundamentalismo islâmico e certas seitas messiânicas nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.
Terceiro, num momento em que pululam as ideologias multiculturalistas e neonacionalistas, que pressupõem a crença no valor das identidades coletivas, são inevitáveis os pontos de contato com um autor como Euclides, que, a partir da valorização do sertanejo, tenta fixar os contornos de uma identidade nacional brasileira.
Quarto, numa fase de declínio dos paradigmas tradicionais, ressurge o interesse por paradigmas alternativos. Euclides parece ter o mérito de tornar supérfluo o modelo marxista, pois disserta sobre o atraso e a ignorância dos sertanejos sem, em nenhum momento, usar palavras como classe social, modo de produção ou latifúndio. Ele permite, também, fazer a economia do igualitarismo iluminista, pois suas teorias raciais, ainda que obsoletas, têm ao menos a vantagem de chamar atenção para a realidade das diferenças entre os vários grupos humanos.
Como se vê, algumas dessas apropriações são saudáveis. Outras são problemáticas. Mas o saldo é positivo. Pensar é preciso, e Euclides da Cunha está ajudando os alemães a pensarem. Depois que a Alemanha contribuiu para Canudos, exportando canhões Krupp, é ato de justiça histórica que Canudos, exportando idéias, contribua para o debate cultural alemão.

SÉRGIO PAULO ROUANET é filósofo e embaixador de carreira, autor de "As Razões do Iluminismo", entre outros; foi ministro da Cultura (governo Collor) e atualmente exerce o cargo de cônsul-geral do Brasil em Berlim (Alemanha)

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