São Paulo, domingo, 3 de setembro de 1995
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'Pocahontas' transforma crônica de atrocidades em fábula infantil

MICHAEL LIND
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Esperei meses pela estréia de "Pocahontas", o musical animado da Disney. A simples idéia de um musical familiar baseado nos começos da colonização inglesa da Virgínia é no mínimo intrigante.
Pensem só: de 1607 a 1646, os colonos ingleses viveram em constante estado de guerra contra uma federação algonquina, os Powhatans -assim chamados em homenagem ao pai de Pocahontas. É claro que houve várias tréguas, uma delas quando Pocahontas, refém dos ingleses, foi devolvida em troca de um pouco de milho, e outra quando a "princesa indígena", já batizada e falando inglês, casou-se com um viúvo inglês, John Rolfe. Mas, de resto, a história colonial da Virgínia é uma crônica de atrocidades e represálias de ambas as partes.
Para remediar a situação, as crianças foram jogadas ao rio e tiveram suas cabeças esfaceladas a tiro; quanto à mãe, o presidente insistiu que a queimassem, pois um estrangulamento sobre o patíbulo seria bom demais para ela" (aposto que isso vocês não viram nada disso no filme).
Um pouco mais tarde, os ingleses atraíram 200 indígenas Pamunkey para discutir a paz, mataram todos com vinho envenenado e então assassinaram e escalpelaram outros 50. A Companhia da Virgínia em Londres achou o vinho envenenado um pouco exagerado.
Gerações posteriores de americanos brancos acharam melhor esquecer tudo sobre a ânsia anglo-virginiana por espaço vital, exceção feita ao episódio romântico do resgate de John Smith por obra de Pocahontas.
Em 1867, Henry Adams tentou desautorizar o relato que fez Smith de seu resgate por Pocahontas. Entretanto, estudos recentes mostram que os relatos autobiográficos de Smith são convincentemente precisos.
A tendência a uma avaliação mais objetiva de Smith é discernível no retrato que traça Arthur Quinn: o capitão era um "perfeito espécime de exuberância e volúpia elizabetanas", cujos grandes trunfos eram a "ousadia, a astúcia e a sorte".
A campanha de lançamento do filme da Disney exibe um John Smith louro, de barba feita e com a voz de Mel Gibson. Smith acaba mais parecido a um protagonista de conto de fada que ao soldado renascentista que, antes dos 30 anos, já fora pirata, mendigo na Irlanda e mercenário a soldo do reino da Hungria.
Ao contrário da história do resgate de Smith, a história do posterior casamento de Pocahontas com John Rolfe não alcançou popularidade alguma durante os séculos em que casamentos inter-raciais eram não apenas o maior tabu norte-americano, mas também ilegais na maioria dos estados. Em 1924, a Assembléia Estadual da Virgínia revisou a lei local antimiscigenação, que datava do século 17, em favor dos orgulhosos descendentes de Pocahontas: "Pessoas com 1/16 ou menos de sangue indígena americano, sem nenhum outro sangue não-caucasiano, serão consideradas brancas".
Não é necessário observar que essa definição teria excluído a própria princesa indígena. Se ela e Rolfe tivessem se casado na Virgínia no começo do século 20, teriam cometido grave delito.

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