São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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O universo marginal

LUIZ RONCARI

Os Filhos de Caim - Vagabundos e Miseráveis na Literatura Européia (1400-1700)
Bronislaw Geremek Tradução: Henryk Siewierski Companhia das Letras, 372 págs. R$ 28,00

No poema "Abel e Caim", do capítulo "Revolta" de "As Flores do Mal", Baudelaire expõe em dísticos, alternadamente, os destinos opostos das gerações de Abel e Caim. A raça abençoada de Abel goza de todos os benefícios materiais e morais da vida: dorme, come, bebe, tem as oferendas bem recebidas pelos anjos, é fecunda, produz e reproduz como os percevejos dos bosques, inclusive seu ouro, se aquece no lar patriarcal e até seus cadáveres são úteis, adubando o solo quente. A raça deserdada de Caim sofre todos os martírios dos malditos: chafurda no lodo, suas entranhas uivam de fome como um cachorro velho, treme de frio nas cavernas como o chacal, o coração queima de um amor perigoso e sua família se arrasta arquejada pelas estradas, condenada a um esforço infinito.
Nos dois últimos dísticos, o poeta pára de descrever as situações contrastantes e passa a fazer projeções. Para a vergonha da raça de Abel, "Le fer est vaincu par l'épieu!", o ferro do arado da sua geração laboriosa é vencido pelo da espada dos nômades de Caim, invertendo a situação de ambos, como aparecem no "Gênese", Caim agricultor e Abel pastor. E a raça de Caim sobe ao céu "et sur la terre jette Dieu!". Seja nas exposições seja nos anseios, toda a simpatia e a solidariedade do poeta está com os deserdados de Caim, o que o aproxima dos românticos hugoanos, que enxergavam neles mais humanidade. Porém não é aí também que encontra identidade, os valores que lhe permitam a transcendência "d'un monde o— l'action n'est pas la soeur du rêve". O poeta agora está só, o que o distancia deles.
Ao lado da dimensão simbólica dessa divisão dos homens, podemos enxergar também uma histórico-social, vendo na geração de Abel o burguês, o homem integrado e satisfeito: prolífico, virtuoso, honesto e, até possivelmente, belo; qualidades garantidas porém pela mesa farta e renda segura, tendo a posse como a base de sustentação das virtudes. A raça de Caim não se limita ao pobre destituído e explorado pelo novo sistema fabril, e a sua vitória final "o anúncio da vitória do proletariado revoltado", como interpreta o crítico (1). Seus deserdados são também prostitutas, criminosos, vagabundos e mendigos, mais próximos do lumpesinato e da boêmia (os pobres "indignos" e "não-respeitáveis") do que do mundo do trabalho.
Para o poeta, a riqueza nas suas manifestações exteriores e morais divide e separa os homens, e o que o comove é o olhar da pobreza diante dela. Olhar inquietante e revelador, capaz de surpreender uma humanidade composta de seres tão diferentes e iguais ao mesmo tempo, como podemos observar em "Le Joujou du Pauvre", "Les Yeux des pauvres", "Assommons les Pauvres!" e outros, nos "Pequenos Poemas em Prosa". Seus "filhos de Caim" são aqueles que ficam de fora, à margem, na contramão da vida social corrente e não participam da festa e da hipocrisia comum do mundo burguês. Pertencer ou não ao universo do trabalho não é tão importante quanto afrontar e negar com seu modo de vida os termos da convivência postos pela modernidade. Nesse sentido, o dândi e o "flâneur" equivalem aos vagabundos e miseráveis. A atitude do poeta de solidarizar-se, colocar-se ao lado deles e acompanhá-los na recusa só foi possível no século 19, com as profundas repercussões que conhecemos para a poesia.
No período estudado por Geremek, de 1400 a 1700, o termo "filhos de Caim" não tem o sentido positivo, subjetivamente dado pelo poeta, invertendo-o segundo seus próprios critérios e a partir de uma visão muito pessoal do mundo (porém global, pois todos os homens participam de uma ou de outra categoria). "Filhos de Caim" é o nome que a tradição deu a um grupo relativamente definido de pessoas: vagabundos, mendigos, vigaristas, ladrões e bandidos, e o traço comum é o de não participarem de uma das duas pontas do processo de trabalho, a dos esforços da produção, embora sejam quase todos ávidos pela posse dos resultados e benefícios.
Não é à toa que se recorra muitas vezes aos ratos para a sua representação, não tanto pelo aspecto asqueroso dos bichinhos, como pelo lugar muito singular que ocupam no mundo animal. Nem permaneceram selvagens, mantendo-se afastados dos campos cultivados e cidades, nem se deixaram domesticar como cachorros e gatos, firmando um contrato de troca e convivência com o homem. Os ratos concentraram-se nas margens dos espaços ocupados, nem fora nem dentro, nos interstícios fronteiriços e subterrâneos, onde podiam se esconder e de onde podiam aproveitar os dejetos e os descuidos da civilização que os repelia. Desse modo, "o marginal" (sem o sentido pejorativo que a palavra tem para nós) não é aquele que se coloca fora de uma sociedade que recusa, mas o que se mantém nas bordas, numa posição que lhe permite participar da melhor maneira do que ela produz, contanto que não pelo trabalho.
O objeto de estudo de Geremek não é portanto o pobre: o camponês, o servo, o artesão ou as camadas ditas populares das sociedades tradicionais européias, aqueles que representam as raízes de sustentação da sociedade, como aparecem no admirável sonho alegórico de Simplex, no "Simplicius Simplicissimus", do século 17, de
Continua à pág. Especial-19

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