São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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O Universo Marginal

LUIZ RONCARI

Grimmelshausen: “A raiz da árvore era feita do povo miúdo, artesãos, mecânicos, camponeses sobretudo e outras pessoas negligenciáveis. E entretanto eram eles que comunicavam à árvore a força e a vida, e rejuvenesciam sua seiva, à medida que ela se consumia...” (2). O “marginal” de que trata o autor é também muito distinto dos excluídos da ordem atual. Enquanto estes são resultantes de um desenvolvimento econômico e tecnológico perversos, que, ao invés de criar novos postos de trabalho permitindo a integração, reduzem e expelem para as periferias sociais cada vez mais pessoas, nas sociedades tradicionais estudadas por Geremek dá-se justamente o contrário: as determinações dos poderes estão sempre voltadas para a assistência caritativa e a coação ao trabalho; as legislações, como as Poor Laws inglesas, e as ações, como a marcação a ferro e a fustigação, têm sempre em vista reprimir “a vadiagem” do pobre e forçá-lo ao trabalho. São formações com orientações e dinâmicas opostas que criam deserdados de naturezas muito distintas: uma que desqualifica e desemprega, e outra que obriga e sujeita. Não tem sentido perguntar qual a pior.
Mas a preocupação do livro não é com a história social. Ele está mais voltado para uma história das representações, um estudo das imagens que produziram determinados grupos capazes de expressão de outros, que não gozaram das mesmas condições: aqueles que não tiveram voz nem meios na história. É esta perspectiva que leva o autor a se utilizar da literatura para o estudo da história, entendendo-se bem que sua preocupação não é com o fato social ou a verdade do fato, mas com a refração do objeto na representação e expressão de um sujeito pertencente a um outro campo social. De outro modo, como os filhos de Abel viram e representaram os filhos de Caim, ou, nas palavras do autor: “...tais representações integravam a cultura e a literatura da elite, e que foram absorvidas pelas elites sociais como produtos das elites intelectuais” (3). Segundo a representação feita por alguém estranho, quando não hostil, ao objeto representado, o preconceito contamina o meio onde a imagem se refrata, o que a deforma num alto grau.
A escolha do objeto e a orientação da pesquisa - as imagens literárias dos vagabundos e miseráveis - mereceriam uma discussão quanto a sua produção de sentido e ao resgate de valores (como o foi para Bakhtin estudar a cultura popular da Idade Média e do Renascimento, o sistema de imagens do baixo e do grotesco, na literatura de Rabelais, um dos trabalhos-guia do autor). Em “Os Filhos de Caim”, o leitor com frequência sente-se olhando para um vazio axiológico e fica se perguntando sobre suas motivações e o que extrair dali, já que Geremek trabalha apenas na reconstituição das imagens, sem revelar outra dimensão que pudesse alterar a visão a respeito do sujeito estudado.
Ele ainda enfrenta duas dificuldades que mereceriam ser discutidas, mas que só poderemos enunciar aqui. A primeira é quanto às fontes, que incluíam obras efetivamente literárias, como poemas, novelas e romances, e outras que só tinham algum valor literário, como crônicas e narrativas de observação (4), ou eram simples relatórios, panfletos, documentos judiciais, éditos etc. São fontes onde a convenção e a observação, o preconceito e a informação nova se combinam de modos e com pesos muito distintos e dão às imagens naturezas também diversas.
Geremek porém tem o devido cuidado e mantém sempre muito discernimento nas interpretações e análises. É um dos melhores méritos do autor, para a satisfação do leitor alheio à área historiográfica, que espera sempre pegar o historiador na curva. A segunda, ligada à anterior, é quanto à relação e combinação dos estudos históricos com os literários, aproximação ao mesmo tempo fecunda e perigosa. É o modo de reunião desses dois campos no livro que parece mais problemático, gerando muitas vezes um sentimento de indefinição (e insatisfação): por um lado, é muito reduzido o seu olhar sobre o objeto histórico-social na realidade empírica, o que faz com que o referente perca em densidade (5) e não se mostre com outras facetas que foram obscurecidas pelos contemporâneos; e, por outro, ao procurá-lo na literatura, “excelente espelho da consciência social” (pág. 10), “como num espelho côncavo” (pág. 8), não tem como não reduzir agora a literatura a essa função de espelhamento, na sua procura pela imagem - “spectrum”, dando muitas vezes a impressão do autor estar caçando fantasmas -, sem compreendê-la integrada ao todo da forma literária. Dificuldades e perigos porém de que Geremek tem clareza e que o faz atravessar com habilidade os riscos das fronteiras.

NOTAS
1. Baudelaire, Charles. “Oeuvres Complètes”, Paris, Robert Laffont, 1980, pág. 957, nota à pág. 91
2. Grimmelshausen, Johann Jacob. “Les Aventures de Simplicius Simplicissimus”, Alençon, Aubier, 1988, col. bilíngue, págs. 116 e 117 (t. do a.). Ou os círculos externos de cor preta, na alegoria da mesma família, de Gonçalves Dias, que representa a sociedade brasileira como as circunferências concêntricas provocadas por uma pedra lançada no lago, no diálogo “Meditação”, ficando no centro, como os círculos menores, “um punhado de homens” de cor branca
3. Geremek, Bronislaw, op. cit., pág. 302. Sobre a relatividade desses pressupostos, ver a “Introdução” do livro de Gertrude Himmelfarb, “La Idea de La Pobreza: Inglaterra a Principios de La Era Industrial”, México, FCE, 1988, em especial pág. 25
4. Entre estes, para um estudo equivalente da mendicância e marginalidade no Brasil, é uma fonte interessante, não pelo que contém de observação, mas como visão “ilustre” do preconceito, que combina com piedade gosto pelo pitoresco e medidas repressivas, o livro de Mello Moraes Filho, “Factos e Memórias - A Mendicidade do Rio de Janeiro. Ladrões de Rua. Quadrilhas de Ciganos...”, Rio de Janeiro, H. Gamier, 1904
5. Ver o livro notável de Gertrud Himmelfarb, acima citado, onde ela articula de modo exemplar a história social com a história das idéias no estudo do tema

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