São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Surrealistas nos trópicos

PAULO VENANCIO FILHO
MIRÓ/OEUVRE-GRAVÉ

Vários Autores Maeght Editeur, 109 págs R$ 25,00
Catálogo da Mostra Miró
Paulo Sérgio Duarte Miró/Gravuras (SP) e Miró/Obra Gráfica (RJ), 6 págs. R$ 5,00
Man Ray/Cinema
Kenneth Wayne Catálogo da Mostra de Fotografias e Filmes Association Internationale Pour Man Ray, 35 págs. R$ 12,00
Os surrealistas podem, de certo modo, ser divididos em dois tipos: os que foram influenciados pelas idéias do movimento, mas intimamente nunca o foram, e aqueles que, acima de tudo, eram personalidades integralmente surrealistas. Estas exposições reúnem um artista do primeiro tipo, Miró, e um do segundo, Man Ray. Miró nunca esteve no centro do surrealismo, nem pertenceu à ortodoxia militante. Man Ray foi, podemos dizer, do comitê central do movimento, ao lado do poeta André Breton, e realizou, provavelmente, a obra mais inteligente, provocante e surpreendente que o surrealismo oficial produziu.
Junto com as recentes exposições da obra gráfica de Miró (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte), e a mostra de fotografias e filmes de Man Ray (Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro), vieram algumas publicações sobre aspectos das obras desses artistas. E, no caso de Miró, também foi editado um catálogo para as mostras do Rio e de São Paulo. São publicações que se complementam: imagens e depoimentos poéticos, no volume da Fundação Maeght, e um texto crítico, "Imaginação Libertária", do crítico de arte Paulo Sérgio Duarte, no "folder" brasileiro.
O pequeno catálogo da Fundação Maeght reproduz 61 gravuras de Miró e traz textos de importantes poetas, quase todos ligados ao surrealismo, como René Char, Paul Eluard, Tristan Tzara, Jacques Prévert, Michel Leiris, Raymond Queneau e também do escultor Alberto Giacometti. São textos e poemas que mostram a atração que a obra do artista exerceu sobre personalidades poéticas tão diversas. Poemas que vão além da mera homenagem -muitos citam o nome do artista- e procuram traduzir o impacto das visões plásticas do Miró sonhador, visionário de uma natureza ampliada e simplificada, onde Sol e Lua, noite e dia, comandam o ritmo de linhas, arabescos e signos e a irradiação das cores.
Já o texto de Paulo Sérgio Duarte é uma análise da posição singular de Miró no movimento surrealista e deste na arte moderna. Mostra como Miró se afasta de boa parte da produção surrealista que "regride a valores pré-cubistas, em nome da ilustração de fantasias oníricas e de alucinações (e) retorna, com frequência, a uma pintura literária". Estritamente visual e antiliterária, a poética singular de Miró o coloca ao lado do traço gratuito da criança e do gesto supostamente ilógico dos loucos, onde a verbalização ainda não se instalou.
Man Ray é o empirista do surrealismo, ou seja, duas vezes surrealista; um experimentador mais próximo de um Thomas Edison e um parente dos Irmãos Marx -menos "artista" que todos os outros artistas do movimento, prodigiosamente produtivo, pintor, criador de objetos, desenhista, fotógrafo e "cineasta de péssimos filmes", segundo ele mesmo. Todas as imagens, todas as insinuações e sugestões surrealistas foram perseguidas por Man Ray. Até no cinema.
O catálogo "Man Ray/Cinema", publicado pela Association Internationale Pour Man Ray e editado por ocasião do American Film Festival, em Deauville, 1993, que acompanha as mostras de filmes e fotos, no Brasil, resume-se ao texto de Kenneth Wayne, "Man Ray and Film", informativo e elucidativo sobre as conflituosas relações do artista com o cinema.
Foi muito a contragosto, mais por estímulos de amigos que por vontade própria, que Man Ray realizou quatro filmes completos: "O Retorno à Razão" (1923), "Emak Bakia" (1926), "A Estrela do Mar" (1928) e "O Mistério do Castelo do Dado" (1929). E foi o suficiente; nunca mais voltou a filmar. Mesmo quando, durante a Segunda Guerra, voltou para os EUA e morou 11 anos em Hollywood, ao lado dos grandes estúdios, convivendo com os astros e o mundo do cinema, não se sentiu estimulado para novos filmes. Aqueles que realizou eram essencialmente obras de circunstância, motivadas por amizade, despretensiosas experiências quase domésticas, que se tornaram obras de vanguarda pela própria natureza do descompromisso que as originara.
Man Ray tinha consciência dos procedimentos inovadores e anticonvencionais que seus filmes utilizavam e do efeito que produziam: "testar a paciência do espectador" era a intenção dadaísta, da qual compartilhava. Esta intenção não era exatamente a da indústria cinematográfica, e Man Ray -que foi também um bem-sucedido, inclusive comercialmente, fotógrafo de moda- sabia que qualquer filme seu seria uma verdadeira catástrofe comercial. "O cinema nunca me interessou enquanto artista", afirmou certa vez -e como só consentiria em fazer cinema como artista integral, logo se percebe a incompatibilidade entre o artista que era e o possível cineasta, que, na verdade, nunca foi.
O cinema foi mais uma curiosidade passageira dentro de uma obra extensa e múltipla -certamente não foi o que de melhor produziu. Apenas um desvio sem grandes consequências, mas que nunca chegou a lamentar: "Minhas incursões pelo cinema me fizeram mais mal do que bem". Mal que, em todo caso, não durava muito tempo, como ele mesmo reconheceu: "O grande mérito de meu filme -'Emak Bakia'- é que ele não dura mais do que 15 minutos".
S ofisticado organizador visual de um mundo elementar, pouco se esperaria de Miró a respeito de alguma referência ou aspiração ao cinema. Mas talvez seja possível falar de uma "visão" cinematográfica do pintor, da maneira como suas telas são também grandes "zooms", extensões do espaço onde o macro e o micro oscilam na operação de uma lente que aproxima e afasta, sempre dentro da realidade e nunca fora dela.
Existem certas experiências que os meios de transporte modernos propiciam e que correspondem ao cinema às avessas; quando nos movemos em velocidade, confortavelmente sentados, enquanto o mundo permanece imóvel -e o cinema nos dá a ilusão contrária de, confortavelmente sentados, ver o mundo se mover. Daí serem chamadas de cinematográficas. O sobrevôo é uma experiência dessa ordem, à qual Miró não ficou alheio. Em um depoimento, citado no catálogo da Fundação Maeght, afirma que uma das maiores emoções de sua vida foi um vôo noturno sobre Washington: "Vista de avião, uma cidade, de noite, é uma maravilha. E do avião se vê tudo. Até as coisas mais pequenas, até mesmo um cachorrinho. E isso assume uma importância enorme, como, na escuridão absoluta, durante um vôo noturno, uma ou duas luzes de camponeses".
É provável então que as telas de Miró tenham algo de cinematográfico no sobrevoar visualmente o espaço ilimitado: "O espetáculo do céu me deslumbra". O céu, o primeiro grande cinema, o Sol, a Lua, os astros, os primeiros atores, Miró um espectador assíduo e permanentemente extasiado. A tela é um céu plano, "um plano geral", o espaço vazio, a tela em branco onde tudo tem início: "Os espaços vazios, os horizontes vazios, os planos vazios, tudo que é despojado sempre me impressionou muito".
Sem querer, sem saber, Miró foi um cineasta, à sua maneira. Talvez mais que Man Ray, que sabia o que era o cinema e não quis ser cineasta.

ONDE ENCONTRAR
Catálogos "Miró": em São Paulo, na Pinacoteca do Estado (av. Tiradentes, 141, Luz, CEP 01101-010, tel. 011/227-6329; fax 011/228-9637); no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil (rua Visconde de Itaboraí, 78, Centro, tel. 021/253-5366)
Catálogo "Man Ray/Cinema": em São Paulo, na Livraria Augôsto Augusta (r. Augusta, 2161, tel. 011/282-1830; fax 011/280-1013); no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (rua 1º de Março, 66; tel. 021/216-0545; fax 021/233-6536)

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