São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Arte e dinheiro

SÉRGIO MICELI
LIVRE-TROCA: DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIA E ARTE

Pierre Bourdieu e Hans Haacke Tradução: Paulo Cesar da Costa Gomes Bertrand Brasil, 135 págs. R$ 16,00
Os diálogos entre o sociólogo Pierre Bourdieu e o artista plástico Hans Haacke tematizam questões candentes da vida cultural nas sociedades industriais contemporâneas. Apesar da constante remissão à experiência européia e norte-americana, o conteúdo substantivo das intervenções se ajusta no essencial tanto aos debates correntes sobre política cultural quanto aos condicionantes incidentes sobre as práticas dos produtores de cultura no Brasil.
Hans Haacke é autor de magníficas instalações de explosivo teor político, inclusive a famosa "Germania", com que ganhou o Grande Prêmio da Bienal de Veneza em 1993. A documentação fotográfica de alguns desses trabalhos foi intercalada ao longo do texto, oferecendo ao leitor acesso à sua linguagem ferina e provocativa. Bourdieu talvez seja hoje o mais renomado e polêmico sociólogo da cultura, tendo logrado conciliar as exigências expressivas da análise etnográfica às ambições generalistas da sociologia. A direção e o conteúdo das conversas acabam surpreendendo por uma quase "inversão" dos papéis e ênfases expressos nas falas de ambos. Ou seja, Haacke externa pontos de vista minudentemente fundamentados em termos empíricos, demonstrando familiaridade com os interesses dos altos, médios e baixos escalões do mundo artístico profissional, por vezes parecendo uma espécie de cientista amador de sua própria atividade. Bourdieu, por sua vez, capricha no ofício de crítico de arte, pronto a deslindar motivações e procedimentos no processo de fabricação técnica de Haacke como suporte dos disparos críticos por ele desencadeados.
O foco dominante dessa conversa é o poder econômico e institucional de uma "direita neoliberal" no campo da produção cultural, evidenciando as novas modalidades de constrangimento financeiro e doutrinário a que se vêem submetidos artistas, cientistas e intelectuais em geral, sobretudo aqueles cujas obras e iniciativas enfrentam maiores resistências por parte das instâncias comerciais de distribuição.
A rede internacional de intelectuais conservadores inclui desde curadores de museus prestigiosos, dirigentes de fundações culturais, passando pelos executivos de escritórios de relações públicas, pelos políticos profissionais, até os jornalistas e demais personagens envolvidos com o trabalho de recepção e promoção das obras de arte. A interferência crescente dessa nova "turma" de benfeitores da vida artística e científica está ancorada na pretensa contribuição financeira que eles estariam em condições de garantir com montantes substanciais de subsídios carreados para a atividade cultural. Conforme dão a entender as tomadas de posição veiculadas por seus porta-vozes, tudo se passa como se esses agentes e intermediários fossem, em última análise, responsáveis pela constituição de um mercado propriamente capitalista de bens culturais.
Tal como Bourdieu e Haacke explicitam, essa postura de voluntário comprometimento se escora num esquema azeitado de isenções de impostos, de retornos e lucros de toda espécie. Em certa medida, somos nós mesmos, os contribuintes, que garantimos materialmente a arte e a ciência, embora tal financiamento apareça como um efeito da generosidade desinteressada das empresas. Esses mecanismos perversos acabam colocando em risco as margens de "liberdade" já conquistadas pelos produtores de cultura, tendo como contrapartida o amesquinhamento das entidades culturais públicas e o enxugamento drástico de seus recursos. Até mesmo políticos e intelectuais experientes andam vocalizando essa toada de racionalizações para o desmonte do setor público na área cultural, eximindo-se de garantir a continuidade operacional dos arquivos, museus e bibliotecas, exatamente aquelas instituições cujos acervos penosamente construídos oferecem as condições mínimas da vida intelectual.
Nesse transe de esgotamento de recursos por que passam as políticas culturais públicas no país, em nome da salvaguarda dos direitos e interesses de um mercado de consumidores, as críticas desferidas contra essas estratégias de patrocínio das artes com o dinheiro dos contribuintes poderão orientar os incautos e minar o discurso conservador. Em tempos de neoliberalismo, o contrapoder a ser exercido pelos artistas e cientistas perante esse esquema de "protetores-tiranos" seria o antídoto indispensável para resguardar os espaços de autonomia já conquistados pelos campos artístico e científico.
Outro tema ardido diz respeito ao papel de intermediação cumprido pelos jornalistas e outras categorias de intelectuais mediáticos. O jornalismo cultural, "filtro entre toda ação intelectual e o público", é abordado quer em termos das coerções econômicas e políticas (anunciantes, governantes etc.) a que está sujeito, quer pela vertente do enfrentamento entre os produtores de cultura e os profissionais da mídia impressa e eletrônica. Alguns exemplos sinalizam com acuidade o que está em jogo. O primeiro deles é a presença de empresários e executivos que juntaram às suas atribuições simbólicas e políticas a tarefa prestigiosa de atuarem como "pensadores" na mídia, divulgando "suas" idéias em espaços conquistados com cacife extra-intelectual.
Constata-se, por outro lado, a ampliação de um segmento de "intelectuais sem obra", que sobrevivem escrevendo em jornais e publicando livros com seus artigos para a imprensa, tendentes a suscitar uma reação favorável dos colegas de corporação. Importantes órgãos da imprensa internacional têm investido na fabricação de seus próprios "pensadores", privilegiando a produção em lugar da difusão de informação ou, em outras palavras, pretendendo "fazer o evento" em lugar de veiculá-lo. Não é de se estranhar, assim, que essa categoria de intelectuais mediáticos tenha desenvolvido novos gêneros e best sellers, em especial as biografias de líderes políticos e de outras personalidades da vida pública.
O ponto alto do livro são os dois textos a respeito da instalação de Haacke premiada em Veneza. O elogio de Bourdieu, "É belo demais", realça os procedimentos técnicos e a economia de meios que viabilizam a pulsação dessa "presença atual do passado no presente vivo" com algumas modificações mínimas na representação fotográfica da visita de Hitler à Bienal de 1934, enxergando nesse compêndio de violência simbólica o mesmo refrão "do culto que a elite (ocidental) não parou nunca de se oferecer, através principalmente do culto do artista e da obra de arte".
O texto de Haacke, "Gôndola! Gôndola!", é uma pequena obra-prima de etnografia histórica aplicada aos bastidores da cena artística, em que se vale da cobertura dos jornais da época para construir uma paródia sobre a constituição do belo na Europa nazi-fascista. Numa sucessão de vinhetas cáusticas, no ritmo característico dos antigos noticiários cinematográficos, Haacke qualifica protagonistas, figurantes, temas, motivos, ideais e estratagemas de uma política cultural autoritária. Essa "grande limpeza" das ameaças marxista, judia e liberal, pretendia celebrar os feitos de uma nova cultura erigida sobre os fundamentos com que Heidegger firmara sua obediência a Hitler e ao Estado nacional-socialista nos idos de 1933: "Nós nos liberamos da idolatria de um pensamento impotente e sem base". Por último, Haacke resume a trajetória artística de Arno Brecker, o favorito do grande chefe nazista que acabou sendo recuperado e entronizado pela liderança democrata-cristã no pós-guerra, tendo-se tornado o retratista de grandes colecionadores burgueses.
São páginas de gozação sobre o envolvimento da arte e dos artistas pelos prazeres terrenos, onde se esboça um perfil crítico do mecenato como um formidável instrumento de comunicação, um instrumento de sedução da opinião, uma forma dissimulada da censura, uma dimensão do gerenciamento ideológico e político, esse misto de panacéia e servidão com que temos de aprender a lidar.

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