São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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A espada do soberano

RENATO JANINE RIBEIRO
LEVIATÃ

Thomas Hobbes Prefácio: João Paulo Monteiro Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Lisboa, 526 págs. R$ 20,00
A filosofia política mantém relações próximas com a polêmica. É verdade que, do ponto de vista etimológico e conceitual, política remete a pólis, a cidade organizada enquanto Estado, e polêmica a pólemos, guerra. Por isso a política deveria estar longe da polêmica, porque na primeira as tensões entre os homens se resolvem mediante o recurso à palavra (daí as origens da democracia grega, afirma Vernant), o que exclui, justamente, a força física. Toda política, em especial hoje, quando se entende a política "par excellence" como democrática, constitui assim um espaço de paz, de conflitos administrados, de nível rebaixado de tensão, se comparado com o da guerra, cuja meta explícita é vencer, se preciso destruindo o inimigo.
E no entanto toda filosofia política tem algo de polêmico. Difícil compreendê-la sem ter em mente para quem, contra quem e contra quê ela é escrita. Ainda mais quando se trata de um dos pensamentos mais atacados da história. Provavelmente, em toda a história da filosofia, apenas Maquiavel foi mais condenado que Hobbes. Mesmo em nossos dias, quando se quer criticar o poder tentacular do Estado, deitando por exemplo garras sobre a economia, fala-se com frequência em "Leviatã". Poderíamos, é claro, corrigir os equívocos de tal leitura; mas essa estratégia é um tanto inútil, porque é exatamente a má fama de Hobbes que fornece uma das melhores vias de acesso a nosso autor.
Boa parte da discussão sobre Hobbes se prende, ainda hoje, ao tom veemente -polêmico- de nosso autor e às reações que ele assim despertou já em seu tempo. Sua biografia, aliás, é instrutiva. Até os 40 anos, ele foi um cultor dos clássicos, que traduzia Tucídides para mostrar pelo exemplo de Atenas, na guerra do Peloponeso, os maus efeitos da democracia: seu empenho político assim praticamente se resumia em tomar o partido de Carlos 1º no conflito que esse desastrado rei iniciava com o Parlamento.
Mas foi por essa ocasião, em 1628, que lhe caíram em mãos os "Elementos de Geometria", de Euclides. "Isso", diz seu biógrafo, "o fez apaixonar-se pela filosofia". A demonstração racional, nos moldes dos teoremas, passa então a ser o modo pelo qual se aplicará à física e à política. Se como cientista logo foi esquecido (a Royal Society, fundada em 1660, não o quis como membro), enquanto filósofo político ele ficou como uma referência teórica fundamental. Apesar disso, é possível que não se tivesse envolvido tanto em política, não fosse a Revolução que começou por volta de 1640, e que o levou, medroso que se confessava, a ser "o primeiro de todos a fugir" da revanche que se anunciava contra os absolutistas.
Curiosamente, esse homem timorato teve a coragem de escrever dois livros sem concessões, que a poucos terão agradado em seu tempo. O primeiro é "Do Cidadão", editado em 1642, que faz uma análise meticulosa e argumentada do político (Martins Fontes, 1992). O segundo, de 1651, é o "Leviatã", obra dirigida a um público mais amplo e que, talvez por isso, argumente um pouco menos, ao mesmo tempo que é mais veemente em sua crítica ao clero, cujo discurso considera responsável pela subversão da ordem legal.
Temos, nestes dois livros, a crítica mais acabada à idéia medieval de um poder misto, no qual rei e parlamento se equilibravam. Uma ameaça se desenha com força, a da dissolução das relações sociais (o "estado de natureza", de guerra de todos contra todos, no qual o homem "é o lobo do homem"). Contra esse perigo, a única saída que Hobbes vislumbra está em confiar todo o poder a uma única instância. Pouco importa que esse soberano seja um homem (monarquia), um senado de poucos (aristocracia) ou a assembléia de todos (democracia). É certo que nosso filósofo prefere o governo monárquico, mas ele deixa claro que o fundamental é conter os conflitos, que sempre ameaçam tornar-se totais, mediante uma autoridade central e inconteste. Na verdade, Hobbes é menos o ideólogo do absolutismo que o teórico da soberania.
Essa doutrina não foi assumida, porém, por nenhum partido político. Desagradou aos defensores do Parlamento, boa parte deles puritanos, porque censurava toda subversão, a qual, aliás, Hobbes atribuía aos pregadores. Mas também não contentou os realistas, porque em vez de fundar a monarquia nos desígnios misteriosos de Deus, como queria a doutrina do direito divino dos reis, dava ao poder uma base estritamente racional, a dos interesses dos homens. Contra os dois lados, pois, Hobbes denunciava a interferência do religioso nos assuntos políticos: seu Estado "temporal e espiritual" é talvez o primeiro em que a gestão do além está completamente subordinada ao poder neste mundo.
Assim, há na obra de Hobbes algo que está bem datado e algo que escapa às determinações de seu tempo: podemos lê-lo como autor de seu tempo (eu diria, e João Paulo Monteiro também, contra o seu tempo), mas podemos também vê-lo como alguém que ainda tem algo a nos dizer. À sua época, o que ele afirma é uma crítica contundente aos poderes do clero. Se há uma essência da subversão, ela é de ordem clerical -idéia esta que prenuncia as páginas de Nietzsche, na "Genealogia da Moral", contra o ressentimento dos sacerdotes. O que garante a paz é a ordem legal e visível, a do soberano que empunha a espada e por isso, tendo -como diria Weber- o monopólio da violência legal, reduz a temperatura dos conflitos entre os homens privados. Já o que ameaça o convívio é o recurso ao imaginário, aos fantasmas, àquilo que as paixões trazem como contrapoder: e ninguém é tão hábil nisso quanto aqueles excelentes retóricos que são os pregadores.
Essa denúncia do clero, porém, é datada. Anuncia toda uma discussão que vai se estender pelos séculos seguintes, tratando dos poderes da imaginação em política, chegando ao conceito (marxista ou não-marxista) de ideologia. Mas tal discussão há muito tempo deixou de referir-se ao clero, e por isso mesmo essa questão central da obra hobbesiana, contra quem Hobbes escreve, hoje é difícil de se entender. Bom exemplo é que um comentador como Macpherson nem se lembre dela, preferindo discutir se Hobbes era ou não um filósofo burguês -questão por sua vez quase anacrônica, que nestes termos não faz sentido no século 17.
Mas, mesmo que tenhamos chegado, como diz João Paulo, a soluções mais moderadas para o conflito político (e o grande mérito da democracia moderna é ter aprendido a lidar com os conflitos não os proibindo, porém aceitando-os e administrando-os), resta que Hobbes continua uma leitura obrigatória. Mostra-nos que a vida social não é um dado, uma coisa óbvia, mas uma construção permanente e sempre precária; que o homem, longe de se explicar por sua simples natureza, é obra do próprio homem; que em nosso mundo o artifício (que hoje chamaríamos "cultura") ocupa posição primordial; e que todas essas construções humanas, que por preguiça de espírito preferimos considerar dados naturais, vivem sob ameaça.
Para esses perigos, Hobbes sugere uma solução que não nos satisfaz, a do poder que reprime e contém. Tendemos, hoje, a soluções menos severas -mais flexíveis, porque tratam o conflito pelo viés do compromisso, porém igualmente mais precárias, já que se evidencia seu caráter factício, humano, demasiado humano. Tudo isso reduz a imagem fácil de um Hobbes amigo dos déspotas e substitui-a pela de alguém bastante ciente da fragilidade de nosso estar no mundo: uma boa leitura para tempos em que Estados se dissolvem e as relações entre os homens se tornam tão precárias, tão fáceis de se rasgar.

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