São Paulo, terça-feira, 5 de setembro de 1995
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Pode nascer um novo cinema novo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Pode estar nascendo um novo cinema novo
Depois de estética da fome, da estética do faquir, da estética da gula, temos a estética da vontade de comer
Vi três filmes de curta-metragem que são indícios de novos caminhos para o cinema brasileiro, ainda na UTI. "Utero", de Christiano Metri; "Lá e Cá", de Sandra Kogut e "Onde São Paulo Acaba", de Andrea Seligmann. Tremendos filmes. E os três foram recusados pelo Festival de Gramado. Como explicar isso? Será que ainda é a preferência pelos "sketchezinhos" yuppies dos anos 80? Deus castigará a população de Gramado com uma queda de três pontos no seu QI.
Estes filmes refletem sobre nosso cinema e nossa miséria. Miséria e ilusão, os dois temas fundamentais do Brasil de hoje. São três discursos sobre a periferia do Rio e de São Paulo.
"Utero" mostra a solidão de um mendigo que faz amor com bonecas feitas de jornal e lixo e que mora no buraco de um viaduto, pai e mãe de um boneco quebrado. A loucura da miséria, o afeto humano teimando em se infiltrar nas mais tortas formas de vida.
"Lá e Cá" é um conto desarticulado, o registro do cotidiano banal de uma moça de subúrbio. "Onde São Paulo Acaba" é o dia-a-dia vazio de dois adolescentes da periferia. "Utero" tem um andamento mais trágico. "Lá e Cá" e "Onde São Paulo Acaba" adotam um minimalismo cheio de afeto e respeito pelos pobres; conceituais, mas sem frieza.
Os três filmes mostram que algo mudou não na miséria, mas na maneira de olhá-la. Há neles uma nova forma de "engajamento", palavra antiga e fora de moda para os neocínicos. Há uma denúncia mais humilde das contradições sociais. Estes filmes vão além do eterno "lamento" na sua visão da miséria. Antigamente, denunciávamos a miséria como um escândalo moral, uma coisa "fora do lugar". A miséria dava de comer a nosso humanismo. Atacá-la nos enobrecia. Denunciar a fome era um luxo. Antes, "brancos" escandalizados mostravam a outros "brancos" a desgraça dos pobres como sendo um horror, assim como a patroa zelosa se desculpa com a visita que a empregada deixou a sala mal varrida. Antes, muitos artistas tinham até mesmo uma fascinação com a miséria. Era chique denunciar a injustiça social. A miséria já enriqueceu muita gente. A miséria era a profissão lucrativa de muito intelectual.

Terceira via
Hoje, a miséria tem um mistério próprio. Agora, sentimo-nos ameaçados. Com razão. Vendo a miséria nestes filmes, temos a certeza de que algo terrível vai acontecer. Crescem muito as favelas de São Paulo e Rio. Cada vez há mais periferia e menos centro.
Estes filmes não denunciam, mas buscam na miséria alguma pista. Se antes tínhamos um horror humanista com a miséria, hoje já a respeitamos, sabendo que podemos aprender com ela. Estes três filmes admiráveis temem a miséria e humildemente a contemplam.
Não a usam; olham-na com o respeito diante da sabedoria dos grandes trágicos, olham-na em seu abismo de violências profundas, olham-na como a resposta para nossa superficialidade de classe média.
Vendo estes filmes, sinto que começam a acabar dez anos de crise cinematrográfica. Já tivermos uma "boa consciência" política fácil, tivemos um experimentalismo formalista, já tivemos o oportunismo yuppie copiando Hollywood. Depois, foi a crise final. Sobrou apenas uma inocência de videoclipes, filhos bastardos da nouvelle vague e do psicodelismo, talentos paridos pela desinformação cinematográfica e pela publicidade. Agora, a desesperança já começa a dar seus frutos. A queda das ideologias já produz ciência. A desilusão já produz futuro. Já há um motivo para se fazer cinema de novo. Não basta financiamento nem leis. É preciso ter o que dizer e novas formas de dizer. Pode estar nascendo um novo cinema novo. Pressinto nestes filmes uma sabedoria intuitiva sobre o Brasil que faz brilhar uma saída entre o velho horror contra a miséria e o pós-liberalismo que quer ignorá-la. Há uma terceira via surgindo. A periferia ensinando ao centro. Como foi importante perdermos as esperanças fáceis na mudança social...
Sempre me incomodou o lamento caridoso e choramingas com que se mostrava a miséria. Mesmo um Brecht via-a do ponto de vista dos brancos. A miséria como um vírus na lamina de um microscópio. Tanto que danou a ciência política, que hoje o Comando Vermelho começa a fazer sociologia. A miséria amadureceu e nos ensina como deve ser observada, como quer ser estudada. A miséria pode revitalizar a sentimentalidade branca. Há mais sabedoria num pivete da praça da Sé que em muito filho de família. Há uma profundidade de sofrimento nos morros e baixadas. Que teriam estes miseráveis a nos ensinar?

Vontade de comer
Primeiro, é o fim do "escândalo". Tentai impressionar um morador da Baixada com a estatísticas dos últimos "presuntos". Vereis um sorriso entediado.
A dimensão do "que horror!" está banida dos subúrbios. A banalidade do mal criou uma anti-histeria diante da dor que também é didática. Os pobres nos ensinam uma descrença em grandes respostas, em milagres totais. Valorizam o parcial. Ensinam-nos a viver dignamente com os poucos restos da feira da vida.
Nos subúrbios, vivem sem grandes esperanças, mas acreditam na alegria. Já há uma filosofia da miséria, uma poética dos excluídos, ensinando uma precariedade de meios, ensinando uma economia literária que vem da Mangueira e não do Monte Parnaso. Estes três filmes sacam isso.
Há um "Utero", de Christiano Metri uma tragédia shakespeariana (onde Luis Melo atua como um rei decaído), uma ópera dos esgotos que mostra a psicose como sobrevivência na miséria.
Há em "Lá e Cá" (Regina Casé arrasa) uma carnalidade alegre nos pobres subúrbios baldios, um aproveitamento do possível que ensina muito mais que certos cinismos pós-pós. Claro que há o desespero, o crime, a merda. Mas os cotidiano e o presente aparecem mais profundos que a ingenuidade das teleologias burguesas.
No filme de Andrea, por exemplo, os planos abertos predominam, por uma necessidade natural do material mostrado, uma estética de jornal, o contracampo, o outro lado do "Aqui e Agora".
Opera, Godard e Nelson Pereira dos Santos. Sinto nestes indícios que estes três filmes me deram (além do achado paródico pós-casseta de "Carlota Joaquina") algumas razões para crer que um nova imagem do Brasil começa a ser achada, para além da boa consciências da esquerda tradicional e do formalismo suicida do underground dos anos 70. Os pobres têm uma economia sentimental diante da violência que muito pode ensinar sobre secura de estilo. A miséria como forma, também. E não falo de posturas de "arte povera" ou intelectualismo minimalistas. Falo do fim das metáforas ansiosas, falo de flores sem perfume e poemas secos, como ensinaram os toureiros de João Cabral. Agora, a pobreza vem de uma real revisão do mundo e não por uma obrigação de gramática, ou de ideário "concretista".
Acho que, para além da estética da fome (cinema novo), da estética do faquir (underground), da estética da gula (yuppie 80), surge agora a estética da vontade de comer. Cinema de novo.

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