São Paulo, terça-feira, 5 de setembro de 1995
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Rostropóvitch romantiza suítes de Bach

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O violoncelista russo Mstislav Rostropóvitch, 68, lançou em 10 de maio último uma caixa com dois CDs que contêm uma obra que sempre o amedrontou: as seis suítes para violoncelo solo do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750).
A gravadora EMI-Odeon traz esta semana ao Brasil a edição luxuosa com as execuções de Rostropóvitch, realizadas em março de 1991 na basílica de Santa Madalena em Vézelay (200 quilômetros a oeste de Paris).
Além de um livreto com ensaios e fotos, a caixa tem como brinde uma gravura de Salvador Dalí mostrando Rostropóvitch em ação. Homenagem adequada para aquele que é tido como o maior violoncelista vivo.
Em tal espécie de classificação, os mortos sempre levam vantagem. E a sombra do violoncelista catalão Pablo Casals (1876-1973), o maior do século, entra em órbita na caixa preta. Casals celebrizou nos anos 30 uma versão arqui-romântica das suítes.
Talvez por isso Rostropóvitch tenha esperado completar 50 anos de carreira para enfrentar as peças. "Agora eu me tomei de coragem para gravar todas as suítes de Bach, às quais estive tão estreitamente ligado no decorrer da minha vida", declarou na entrevista coletiva concedida em maio último na Academia de Belas Artes de Paris. As suítes representam, de fato, um desafio interpretativo. Fazem parte da formação de qualquer violoncelista. Mas, do uso pedagógico à execução perfeita das peças, há um abismo; chama-se arte.
As formas aparentemente regulares da partitura de Bach colocam um espelho refratário diante do músico. Elas são passíveis de ser interpretadas tanto por um computador como por um músico arrebatado, como Casals.
Para dar uma idéia da força desta versão, o austríaco Nikolaus Harnoncourt, 65, registrou na década de 60 para a Teldec uma integral das suítes como a responder a Casals. Criou uma leitura despida de retórica, cuja secura até hoje não foi assimilada pela crítica. Onde está a verdade sobre a obra?
Bach a compôs provavelmente no período em que foi empregado na corte de Cõthen, entre 1717 e 1723. Nesse período, era encarregado de fornecer música de câmara para o duque Leopoldo. Os historiadores indicam que Bach pensou no violoncelista Christian Bernhard, músico palaciano.
Como em todo ciclo, Bach evoca nesse todo o conhecimento de seu tempo sobre a técnica e a escrita do instrumento. O violoncelo, de origem italiana, ainda dividia a cena com a viola-da-gamba, de som mais rotundo
Nas suítes, Bach faz a linguagem violoncelística avançar. Amplia as marcas do instrumento, até para fazer frente à concorrência.
Na suíte nº 5, em dó menor, por exemplo, ele impõe a "scordatura", a afinação diferente em uma das cordas; no caso, a mais aguda deve ser afinada um tom abaixo. Isso permite tornar mais grave a linha melódica e produzir bruscas mudanças de altura, numa das mais ousadas peças do barroco.
Para efeito da abordagem, Rostropóvitch buscou um meio-termo entre Casals e Harnoncourt, entre a rapsódia e a leitura direta.
Casals tocou para ele a "allemande" da primeira suíte em Moscou em 1957. "Depois disso, pareceu impossível para mim interpretar a obra de outra maneira", diz Rostropóvitch.
Levou muito tempo até se achar livre da leitura de Casals. Ainda em 1960, em Moscou, gravou a segunda suíte baseado em Casals.
Só tomou decisão pela integral em 1990. Optou pela edição de Anna Magdalena, de 1730, uma das duas versões existentes (os manuscritos se perderam), para dar conta da obra.
Gravou numa igreja do século 12 a fim de, segundo declarou, recuperar o ambiente barroco. O disco está cheio de ecos e reverberações e mostra Rostropóvitch dono de toda a situação.
Ele associa cada peça a um estado de espírito. Chama a quinta suíte de "escuridão", a primeira de "leveza", a segunda de "tristeza e intensidade". "Brilho" foi como chamou a terceira, "majestade e opacidade", a quarta. Tachou a sexta de "luz do sol".
Como música aceita qualquer palavra para defini-la, mesmo porque nada significa, esse procedimento poético do violoncelista russo se afigura lindamente infiel.
Não alcança o meio-termo. Rostropóvitch trai romantismo o tempo todo. Os sentimentos estão presentes e sua sarabanda da quinta suíte tem um expressionismo que talvez Bach não tenha imaginado. Mesmo sem querer, os dedos do russo parecem estar sendo conduzidos o tempo todo pela mão invisível de um certo virtuose catalão.

Disco: Cessi Suites de Bach
Lançamento: EMI-Odeon
Quanto: R$ 40,00 (o CD, em média)

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