São Paulo, terça-feira, 5 de setembro de 1995
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O Brasil continua campeão mundial da usura

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Há pouco mais de três meses, publiquei nesta página artigo mostrando que um levantamento sobre as taxas de juros de curto prazo praticadas em 38 países apontava o Brasil como recordista em matéria de juros reais (Folha, 31/5, pág. 1-3). Uma atualização desse levantamento feita para o mesmo conjunto de países, com dados até meados de agosto, continua indicando que o Brasil pratica as mais altas taxas de juro reais.
Nesse meio tempo, o governo brasileiro tomou, é verdade, algumas medidas para aliviar gradualmente as restrições ao crédito e diminuir o seu custo. Mas o gradualismo veio em ritmo de tartaruga. Uma certa aceleração das medidas nessa área só aconteceu nas últimas semanas, depois que o colapso de um banco da importância do Econômico ameaçou degenerar em uma crise financeira mais ampla. Até agosto pelo menos, o Brasil ostentou a condição de líder internacional no campo dos juros.
Elaborado com base em dados brutos divulgados pelo FMI, pela revista "The Economist" e pela imprensa diária, o levantamento inclui todas as principais economias do mundo, com a exceção da China. Abrange o Grupo dos 7, oito outras economias do Primeiro Mundo, alguns países do Leste Europeu, os chamados tigres asiáticos, as principais economias latino-americanas e outros países em desenvolvimento.
Quando se consideram os juros nominais, só a Rússia e a Turquia registram taxas superiores às brasileiras, respectivamente 180% e 65% ao ano, contra 57,2% no Brasil. Deduzida a inflação recente, medida pela variação de índices de preços ao consumidor nos últimos meses, o Brasil passa à posição de primeiro colocado.
Basta fazer algumas comparações para mostrar quão absurdos são os juros na economia brasileira. Descontada a inflação do trimestre até julho, medida pelo INPC, a taxa real de curto prazo alcança 20,4% ao ano no Brasil, quase sete vezes mais do que os 3% observados nos EUA, por exemplo.
No Grupo dos 7 (G-7), que inclui os EUA, Canadá, Japão e as quatro principais economias da Europa, a taxa real média é de 2,6% ao ano para prazos de três meses no mercado monetário. Nesse grupo, os juros reais variam entre um mínimo de -0,5% no Japão (que tenta escapar da recessão e da supervalorização do iene por meio de uma política de juros baixos) e um máximo de 4,6% na França.
Nos demais países desenvolvidos incluídos no levantamento, as taxas de juro não desviam muito dos níveis do G-7, variando entre 1,8% ao ano na Áustria e 6,8% na Espanha.
Entre as principais economias da América Latina, também não há quem possa competir com o Brasil em termos de juro real. Na Argentina e no Chile, as taxas reais estão por volta de 9%. No México e na Venezuela, embora altos em termos nominais, os juros chegam a ser negativos em termos reais para operações de curto prazo, -6,4% e -3,9%, respectivamente. Não é incomum, registre-se, que taxas de curto prazo sejam negativas em termos reais; além dos três casos já mencionados, há mais cinco países nessa situação.
Só dois países, a Grécia e a Turquia, com respectivamente 18,9% e 19,8%, praticam atualmente taxas reais de curto prazo comparáveis às do Brasil. Nenhum dos demais registra taxas acima de 15% em termos reais, e só três deles (Coréia do Sul, Polônia e Portugal) apresentam taxas superiores a 10%.
Não pode haver dúvida, portanto, de que as taxas de juro brasileiras constituem uma aberração em termos internacionais. E não é de surpreender que venham causando estragos tão consideráveis à economia nacional desde março.
Observe-se, ademais, que as taxas acima mencionadas são as que se praticam em operações de curto ou curtíssimo prazo, e estão geralmente próximas do piso do espectro das taxas de mercado. No caso do Brasil, o dado corresponde à taxa efetiva de juros "overnight". Como se sabe, as taxas de juro cobradas nos empréstimos do sistema bancário, especialmente para pequenas e médias empresas ou pessoas físicas, são várias vezes mais altas.
As vítimas dessa política de arrocho creditício e juros estratosféricos são conhecidas: os trabalhadores que perderam seu emprego, os Estados com alto grau de endividamento, entre eles São Paulo, os empresários e consumidores que aproveitaram o Plano Real para aumentar rapidamente as suas dívidas, e as empresas menores que têm pouco ou nenhum acesso ao crédito em moeda estrangeira. Também sofrem os bancos e as demais instituições de crédito mais vulneráveis, que constituem o elo fraco da cadeia financeira.
O próprio governo federal paga um preço elevado pela política do Banco Central. Não só porque esta contribui para aumentar o custo da dívida interna federal, mas também porque o governo acaba sendo pressionado a sair em socorro de alguns setores mais atingidos, agricultura e grandes bancos, por exemplo.
Além disso, a queda do nível de atividade resulta em diminuição do nível de arrecadação. Produz também aumento de despesas como o seguro-desemprego. Dificulta, em suma, a estabilização fiscal indispensável à consolidação da estabilidade monetária.
Vejam o contra-senso. A falta de um equacionamento mais duradouro das finanças públicas é uma das principais razões, alega o governo, para que Plano Real venha dependendo tanto de juros altos e câmbio sobrevalorizado. Mas a persistência de taxas de juro altíssimas acaba contribuindo, de várias maneiras, para solapar a base fiscal do processo de estabilização!
O mais grave é que o governo não fez, nos seus primeiros oito meses, nada de fundamental para reorientar a política econômica. Não conseguiu avançar na direção de um ajuste estrutural das contas públicas. Continua dependendo de expedientes como a volta do IPMF, agora sob nova roupagem, ou a prorrogação do chamado Fundo Social de Emergência.
Também não promoveu recuperação significativa da taxa de câmbio, que continua fortemente sobrevalorizada. A gradual correção do câmbio nominal, desde março, mal arranhou o problema da imensa valorização acumulada, de forma irresponsável, no segundo semestre do ano passado.
Não há dúvida de que o aumento das reservas cambiais, a forte desaceleração da economia e os bons resultados em termos de inflação abrem espaço para que o Banco Central reduza mais as taxas de juro e alivie as restrições ao crédito interno.
Mas a taxa de juro continua sobrecarregada pela necessidade de desempenhar uma dupla função. Serve, por um lado, para atrair os capitais externos necessários ao financiamento do déficit de balanço de pagamentos em conta corrente. Produz, por outro, a compressão do nível de atividade que permite conciliar a diminuição do déficit em conta corrente com a persistência de um enorme desalinhamento cambial.
Resta saber por quanto tempo a economia nacional ainda suportará esses malabarismos.

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