São Paulo, quinta-feira, 7 de setembro de 1995
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A orelha da minha mulher

A orelha da minha mulher
MOACYR SCLIAR
"Sim, eu mordi

MOACYR SCLIAR

"Sim, eu mordi a orelha da minha mulher. Confesso-o. Sem arrependimento.
Comparem o meu gesto com o do primeiro homem, Adão. Ele mordeu uma maçã, que é saborosa; foi portanto guiado pelo prazer. Eu mordi uma orelha, cujo gosto, francamente, deixa a desejar -mas fi-lo guiado pelo sentido do dever. Adão caiu em pecado, eu corrigi o pecado. Adão seguiu o mau exemplo de sua mulher, eu dei uma lição à minha mulher. Adão viu que estava nu e teve de ir correndo se vestir. Eu, ao contrário, estava em trajes discretos, ainda que elegantes, e não precisei recorrer a nenhuma folha de parreira para cobrir a minha nudez. Adão foi expulso do paraíso. Eu estou foragido, mas tenho a certeza de que o paraíso me daria asilo à hora em que eu pedisse, recebendo-me até com honras.
Sim, eu mordi a orelha de minha mulher. Vocês talvez perguntem: por que a orelha? Por que não outra parte da anatomia? E eu vos digo: as orelhas estão ali, em sua privilegiada localização anatômica, exatamente à espera do castigo, se e quando esse se faz necessário. Dos apêndices protusos, são os mais convenientes nesse sentido. Os cabelos estão à mão, mas cabelos só podem ser puxados, não podem ser mordidos. O nariz também está muito acessível, mas, convenhamos, morder nariz não é das coisas mais tentadoras. O queixo não é mordível. A orelha é ótima: pode ser puxada, pode ser mordida. Deus a pôs ali para isso.
E há também o sentido simbólico. Por onde penetra o pecado na mente da pessoa, senão pelas orelhas, pelos ouvidos? A sedução dos odores se faz pelo nariz, e o peixe morre pela boca -mas não há nada como o canto de sereias para nos induzir à tentação. Aliás, mirem a orelha e vocês verão que ela foi desenhada especialmente para isso, para captar palavras vãs, enganosas. A orelha tem aquele desenho em labirinto -um labirinto onde a sabedoria se perde, mas a vaidade se acha. A orelha, meus amigos, é o pecado. Quando o pintor Vincent van Gogh, apaixonado por uma mulher de má vida, deu-se conta de seu erro, o que fez? Cortou a orelha e mandou-a à pecadora. Como se dissesse: fica com essa parte da minha anatomia que ouviu teus sussurros enganadores. Fica com essa orelha que é fonte de escândalo -e me deixa em paz.
Sim, eu mordi a orelha de minha mulher. E devo dizer que não me arrependo. Castiguei-a por sua imprudência, sem recorrer à chibata ou à palmatória: castiguei-a com o instrumento que a natureza me deu para isto, a dentadura. Os dentes são justiceiros, meus amigos.
Mas devo confessar que não entendo os antropófagos. Pelo menos a orelha de minha mulher não me pareceu particularmente palatável. Gosto muito ruim. E um bocado dura.
Pode ser que os antropófagos conheçam algum jeito de preparar orelha. Um dia preciso perguntar a algum deles como é que se faz. Deve haver algum segredo. Um segredo que ele sussurrará -na minha orelha, claro."

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