São Paulo, sexta-feira, 8 de setembro de 1995
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Bloom é seu próprio personagem literário

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Cânone Ocidenta"l, livro do crítico literário norte-americano Harold Bloom (editora Objetiva), corre o risco de decepcionar o leitor de boa-fé. Tem sido visto, e em parte se apresenta, como uma espécie de guia cultural; uma introdução aos melhores escritores de todos os tempos.
Shakespeare, Dante, Cervantes, Dickens, Tolstói, Joyce, Proust: os autores "obrigatórios", isto é, o "cânon", são examinados ao longo de quase 500 páginas. Não se trata, contudo, de um manual, nem mesmo de uma história da literatura. Quem quiser tomar Bloom como guia estará ameaçado de andar em círculos, de perder-se dele em maio ao turbilhão infernal de malevolências, alusões e sarcasmos que o texto desencadeou.
"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate" -deixai toda esperança, ó vós que entrais: o lema do Inferno de Dante caberia como epígrafe nesta introdução sombria e corrosiva aos estudos literários. Isto, por várias razões. A primeira é que Bloom não confia que a leitura de belas obras possa tornar alguém melhor do que é. A literatura serve para dar prazer. Mas que espécie de prazer? Não um prazer acessível a todos -trata-se de um prazer difícil, e quanto mais complexa e intransponível uma obra literária, mais valioso e seletivo o prazer que nos confere. Assim, para usar de um paradoxo tipicamente bloomiano, não somos nós que escolhemos o "cânon": o "cânon" é que escolhe alguns de nós, numa predestinação implacável. O leitor em busca de um paraíso literário tem, aqui, como guia um Virgílio desesperado, numa espécie de Divina Comédia calvinista.
O que talvez seja realista da parte de Bloom. Só que, além disso, seu livro se propõe como obra polêmica. Trata-se de enfrentar a atual voga multiculturalista de esquerda nos Estados Unidos. Sabemos que a orientação "politicamente correta" vem alcançando vitórias na comunidade acadêmica norte-americana. De Shakespeare a Hemingway, são todos autores brancos e machistas. Logo, devem ser substituídos no currículo universitário, em favor dos livros de negros, chicanos, oprimidos em geral.
A estupidez terrorista do "politicamente correto" é atacada sem cessar por Harold Bloom. "A idéia de que beneficiamos os humilhados e ofendidos lendo alguém das origens deles, em vez de ler Shakespeare, é uma das mais curiosas ilusões já promovidas por ou em nossas escolas".
"O Cânone Ocidental" pretende, assim, um duplo objetivo: afirmar a grandeza das obras literárias do passado, dando ao leitor indicações daquilo que vale a pena ser lido, e polemizar com o "politicamente correto", lamentando a decadência dos estudos literários nos Estados Unidos.
Minha opinião é que Bloom não consegue nem uma coisa nem outra. Seu livro é um fracasso em vários sentidos; talvez seja um êxito, entretanto, num sentido muito peculiar, que desenvolverei mais adiante.
Começo pelo ponto mais óbvio. Como defensor do "cânone", Harold Bloom é um crítico muito esquisito. Dedica páginas e páginas a Jane Austen, mas não fala de Baudelaire. Reduz a literatura francesa a Montaigne e Molière. Ficam de fora Rabelais, Stendhal, Balzac -autores canônicos, com toda a certeza, nem mesmo pelo que valem por si próprios, mas pela influência que exerceram sobre todo o Ocidente. Quando Bloom reencontra a literatura francesa, no século 20, em Proust, seu esquema crítico simplesmente desaba. E como entender a literatura da "Era do Caos" -Bloom assim denomina o modernismo literário- sem dedicar uma linha a Mallarmé?
Trata-se de um "cânone" altamente arbitrário, portanto. Acontece que Bloom é um individualista ferrenho, um emersoniano dos mais azedos. A escolha subjetiva é tudo, desde que a pessoa a fazer as escolhas seja "forte", como ele gosta de dizer. Se fui arbitrário, se escolhi uns e não outros, pouco importa, pois quem está escolhendo sou eu.
Muito bem, se o autor estivesse publicando uma coletânea de ensaios, do gênero "my favorite authors". Só que o livro de Bloom se apresenta como um "cânon" -mais o "Cânon de Bloom" do que o "Cânon Ocidenta"l, como vimos- e, além disso, como uma História da Literatura.
Aqui as coisas ficam ainda mais problemáticas. Pois Harold Bloom dispõe os autores escolhidos numa ordem cronológica, e divide seu livro em três partes: a Era Aristocrática, a era Democrática, a era do Caos, prevendo a volta de uma era Teocrática, onde a literatura deixará de ter qualquer importância.
Essa subdivisão do cânon serviria se Bloom pretendesse dar uma visão de conjunto, socilógica, da evolução da literatura ocidental. Mas ele abomina qualquer análise do contexto social das obras literárias; sem esse contexto, a própria história que ele narra, a de uma decadência, perde sentido.
Os demônios feministas, marxistas, foucaultianos, desconstrucionistas, vêm destruir o cânon e negar toda apreciação estética de uma obra literária. Mas de onde surgiram? Por que têm tanto sucesso atualmente? Os inimigos da literatura sempre existiram; o obscurantismo dominante não exterminou Shakespeare ou Cervantes da memória universal. Se, agora, as perspectivas são mais ameaçadoras do que antes, isso exigiria uma análise sociológica, que Bloom não faz. Ou então o sucesso dos obscurantistas há de ter outra razão, que Bloom não pode admitir, mas é a única que ele conhece: a "força literária, a autoridade retórica de seus inimigos.
O espantoso é que, tratando de literatura, Bloom seja muito menos esteta do que proclama ser. A beleza de um trecho ou de uma personagem não é tão destacada quanto seria de esperar. Importam mais as reações de rivalidade, as lutas e invejas, as repressões e diminuições que a obra de um autor exerce sobre a de outro.
Desde "A Angústia da Influência" (Imago), seu mais poderoso livro, Bloom descobriu um método genial de fazer crítica literária. A obra de um poeta tem como assunto, na verdade, a obra de um antecessor. Cada autor "forte" está envolvido num conflito com a tradição. É uma perspectiva iluminadora, em especial se levarmos em conta os hábitos da crítica literária americana anterior a Bloom. Predominava o interesse pelo "texto em si". Cada texto, cada poema, era uma realidade autônoma, atemporal, a ser analisada segundo suas próprias leis de coerência interna. Bloom contestou violentamente esse método. Não existem textos, só personalidades autorais em conflito, e entre elas, acima de tudo, a nossa própria personalidade.
Certamente, o estético na literatura não se reduz à habilidade retórica ou ao virtuosismo verbal, como acreditam os formalistas de todo tipo. Mas o tema da "influência" não é capaz, por si só, de organizar uma "teoria da poesia como pretendeu Bloom.
"O Cânone Ocidental" mostra o poder estético de um autor não apenas como o poder de reagir a obras anteriores, mas também como o poder de criar realidades, ou melhor, personagens e problemas, incontornáveis para as gerações seguintes. A beleza dos textos é tratada de passagem, face ao poder "imaginativo" de um autor -e todo autor, nesse critério, é um discípulo de Shakespeare, o maior criador de personagens da história da literatura.
Essa estética das personalidades/personagens pode certamente ser defendida, mas ao custo de privilegiar o teatro e o romance contra a poesia lírica, por exemplo. Bloom termina derivando daí consequências bizarras. Seu capítulo sobre Freud sustenta a tese (verdadeira) de que uma leitura freudiana de Shakespeare não é capaz de esgotar Shakespeare; e a tese (estranhíssima) de que é possível uma leitura shakespeareana de Freud. O ponto é inconvincente, porque Shakespeare não produziu conceitos manipuláveis, teses que servissem de instrumento para análise, e sim personagens e situações concretas, difíceis de aplicar em outro contexto, exceto sob a forma de alusão.
E como a "força" de um escritor é incomensurável, a própria idéia de um "cânon", de uma história literária, de uma evolução estética, de uma pedagogia para leigos, arruína-se diante do sublime, do indizível, do gigantesco, do que foge a toda capacidade de análise crítica. Bloom não passa cinco páginas sem admitir sua impotência crepuscular diante de cada autor abordado.
E, nesse sentido, talvez este livro de Bloom tenha conseguido um êxito estético, segundo seus próprios parâmetros. Criou, mais do que nunca, um personagem literário: o próprio Bloom, que aparece como uma mistura de Rei Lear, traído pelos discípulos de esquerda, e de Falstaff, hedonista sarcástico. São tão frequentes as alusões a estes dois personagens -com intervenções ocasionais de Leporello e de seu xará joyceano, Leopold Bloom- que essa interpretação não é tão ousada quanto parece. Não há textos; só há uma personalidade neste livro, e é uma personagem fictícia, a de um rabugento dr. Johnson, de um Jó desgraçado, de um dom Quixote acadêmico, de um Whitman pessimista, ou qualquer outra coisa.3

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