São Paulo, sábado, 9 de setembro de 1995
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Flexibilidade para reconhecer os próprios limites

JOSÉ ALBERTO DEL PORTO

A psiquiatria foi marcada, nas últimas décadas, por verdadeiras revoluções no âmbito da terapêutica. É preciso lembrar que até 1930, antes do advento dos tratamentos biológicos, os hospitais psiquiátricos tinham caráter essencialmente custodial. Antes da introdução da clorpromazina (o primeiro neuroléptico) em 1952, dois de cada três psicóticos passavam a maior parte de suas vidas em instituições asilares.
Foi justamente a descoberta dos neurolépticos (usados no tratamento das psicoses) que possibilitou a maciça redução das hospitalizações, nos anos 50, e a ênfase em tratamentos psicossociais para reinserir os pacientes na sociedade.
Na esteira do desenvolvimento da psicofarmacologia, até mesmo as chamadas "neuroses", tidas como campo exclusivo de ação dos psicoterapeutas, tiveram sua terapêutica reformulada. Já nos anos 60, Donald Klein observou que um subgrupo de distúrbios ansiosos, o chamado "distúrbio do pânico", respondia de forma dramática à imipramina, mudando o curso da doença.
Na mesma vertente, outras afecções ditas "neuróticas", como o distúrbio obsessivo-compulsivo, passaram a se beneficiar de tratamentos farmacológicos, naturalmente em associação com as abordagens psicoterápicas.
O impacto dos psicofármacos sobre o tratamento foi certamente um dos fatores que contribuíram para a reinserção da psiquiatria dentro da medicina e para a revalorização do diagnóstico como ponto de partida da atividade do psiquiatra.
A existência de medicamentos específicos para certas doenças tornou imperativo o cuidadoso diagnóstico diferencial entre elas. O profissional não habilitado poderá, por exemplo, incorrer no erro de tratar uma depressão, de tipo melancólico, com recursos exclusivamente psicológicos, em detrimento da recuperação do paciente.
Existe hoje uma "crise" da psicoterapia nos moldes como algumas vezes foi proposta, sem conexão com um planejamento mais global de tratamento do paciente. Ao insistir no diagnóstico, consideramos a psicoterapia um método para tratar de doentes, de acordo com o significado da palavra "terapia" (forma de aliviar ou curar os doentes).
Aqueles que argumentam não fazer "tratamentos", propondo-se a aperfeiçoar pessoas, ou expandir-lhes as potencialidades, situam-se fora dos limites da prática médica. Concordamos com Sonnenreich, quando afirma: "Como psiquiatras, tratamos de doentes, não de pessoas com peculiaridades de conduta, com anomalias que não correspondem a um conceito de doença".
Certas abordagens, como a psicanálise, têm objetivos mais amplos, que transcendem os limites da psicoterapia. Para elas, o desenvolvimento da psicofarmacologia tem interesse apenas em sua intersecção com a terapêutica, ou seja, na medida em que também tratam (em sentido estrito) de doentes. Nesses termos, assemelham-se às outras modalidades psicoterápicas, subordinando-se à prática do diagnóstico.
A complexidade da área impede, muitas vezes, que uma mesma pessoa reúna os conhecimentos necessários para diagnosticar, exercer a psicoterapia e medicar os pacientes. É necessário que os profissionais tenham a flexibilidade de reconhecer seus limites e passem a atuar verdadeiramente em cooperação.

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