São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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'Sisactia' à moda da casa

ROBERTO CAMPOS

Clive Jenkins, um combativo líder sindical inglês, declarou, certa feita, que a única parte do setor público que retiraria do campo da propriedade pública seria o Tesouro...
Por trás da piada, ele sabia bem o que estava dizendo. A experiência do Trabalhismo, desde os sonhos de nacionalização da propriedade privada e da formação de uma Internacional Socialista, no fim da Segunda Guerra, até a embaraçosa realidade da ineficiência que fez da Inglaterra o doente da Europa, teria de levar, mais cedo ou mais tarde, ao reconhecimento que não é com boas intenções que se faz funcionar uma economia.
Do regime soviético, pode-se dizer que pelo menos tinha a eficácia que lhe interessava: “gulags”, execuções a granel, pena de morte aplicada a partir dos 12 anos, privilégios para a elite do Partido - a turma sabia como tratar os proletas e os chatos! Mas os inefáveis socialistas europeus sonhavam a democracia do maná, que cairia do céu sobre todos.
A social-democracia européia há muito já fez o mea culpa (ou foi feita pelos respectivos eleitorados), e hoje é das mais entusiastas da economia de mercado. Muitos aprenderam até a raciocinar em termos de custos/benefícios - um salto prodigioso para quem se habituou a considerar a prodigalidade estatal como inerente à natureza do mundo.
Tudo isso vem a propósito de Fernando Henrique e da “sisactia”, termo que depois explicarei. O governo tem um bom projeto, do qual é possível divergir em pontos específicos, mas que está no rumo certo. Tem uma equipe razoavelmente competente, com certa bisonhice de mexer demais em tudo. É duvidoso que tenha entendido o papel das expectativas numa economia moderna, pois de outra maneira não mudaria com tamanha frequência e nonchalance as regras do jogo...
Entretanto, ainda não saímos de todo das crises, algumas importadas, outras fabricadas aqui mesmo, com reserva de mercado para besteiras velhas e novas. A chamada âncora cambial é uma aspirina, não uma cura. Não vale como substituto para uma política fiscal firme, nem para uma racionalização e modernização do Estado, com redução dos gastos públicos - tudo isso como preliminar para o jogo principal: a retomada do crescimento econômico e a correção das deficiências sociais acumuladas. O problema é o “timing”, como nos filmes policiais.
E esse “timing” está sendo atrapalhado por alguns que deveriam ser aliados naturais do presidente, pois pertencentes ao mesmo partido. É aí que entra a “sisactia”. Esta foi uma forma de perdão das dívidas, com a qual Sólon, há cerca de 20 séculos, evitou uma cisão fatal no povo ateniense. Era um benefício para os extremamente pobres, que as dívidas arrastavam para a escravidão, num momento em que Atenas precisava do engajamento de todos, como cidadãos soldados. Aqui no país da geléia real, porém, são os Estados ricos que querem uma forma de “sisactia”.
Os bancos estaduais, com poucas exceções, se tornaram instrumentos de abusos dos dinheiros públicos por trás do véu institucional. Funcionaram como bancos emissores, fabricando dinheiro (e inflação) a serviço dos interesses eleitorais dos respectivos governos, na esperança de que os encargos fossem finalmente absorvidos pelo Banco Central. Não há razão plausível para que Estados e municípios sejam operadores bancários e muito menos para que recebam tratamento especial, comparativamente ao setor privado, que é o pagador de impostos.
A gestão bancária requer competência técnica e continuidade, porque o mais importante capital das instituições de crédito é a confiança que inspiram. Seus dois problemas mais comuns são excesso de gastos e o baixo retorno das operações. Um resíduo de inadimplência é inevitável, e para isso os balanços contêm provisões para créditos duvidosos. Crises econômicas agravam as coisas, e por isso dirigir banco exige prudência. Mas o princípio geral é simples. Os candidatos a operações de crédito devem dar garantias, isto é, oferecer ativos que, em caso de inadimplência, o banco tomará em pagamento. E, para coibir fraudes, os bancos são proibidos de emprestar a seus dirigentes.
Não é diferente para os bancos estatais. Estados não vão à falência - uma grande pena, porque muitos certamente lucrariam em ser governados por firmas privadas. Mas não têm o direito de ser mutuários, sem fornecer adequadas garantias.
O governador do Rio de Janeiro, que por sinal é do PSDB, deu-se conta de que o aspecto moral e a solução prática coincidiam, e coopera com o Banco Central para deflagrar o processo de privatização do Banerj, delegando sua administração a profissionais privados. E o que é melhor, enquadrando essa privatização num texto mais geral de reformatação do Estado, com sacrifício de funções clássicas. Surpreendentemente, à luz de seu passado pedetista, o governador Marcello Alencar reconhece o sinal dos tempos e procura liderar o povo no abandono da cultura da verba, em favor da cultura do investimento. Enquanto seu antecessor, Brizola, via nas empresas internacionais uma fonte de perdas internacionais, o governador procura atrai-las como geradoras de emprego e difusoras de tecnologia. Certamente percebeu que o masoquismo, que explica a dupla eleição de Brizola, é doença curável, da qual os fluminenses não têm saudade...
Igual ataque de realismo não parece estar acontecendo no rico Estado de São Paulo, que hoje conta com três inimigos: a CUT, o porto de Santos e o ranço estatizante do governo Covas. A agressividade confrontacionista da CUT está provocando a desindustrialização do ABC paulista e leva o investidor estrangeiro a optar por Minas Gerais ou pelo Rio de Janeiro. O porto de Santos disputa o campeonato internacional da ineficiência portuária e é considerado uma ameaça à navegação mundial. O ranço estatizante de Mário Covas, que já se revelara na Constituinte de 1988, não só impede a privatização do Banespa como garante a inviabilidade fiscal do Estado, cujo gigantesco endividamento só pode ser equacionado com maciça liquidação do patrimônio.
As soluções propostas para a crise do Banespa só poderiam ter sido concebidas por inimigos da privatização. Segundo a primeira versão, os capitais privados seriam chamados a participar, permanecendo entretanto o controle nas mãos do Estado, associado ao funcionalismo, a fim de preservar para o banco uma função social! Na segunda versão, metade da dívida seria refinanciada internacionalmente (perspectiva irrealista) e metade pela entrega de propriedades que transformariam o Bacen numa grande imobiliária ou numa pequena Infraero. A solução mais realista, que seria o pagamento em ações de estatais vendáveis (Cesp, Eletropaulo, Comgás, Sabesp) não foi sequer aventada. Tal como formulada, a proposta Covas para reestadualização do Banespa é um exercício de força política e não de razão econômica. Sua aceitação destruiria a autoridade do governo Fernando Henrique para enfrentar os demais Estados inadimplentes.
Além de gerar ceticismo quanto à firmeza de nossa política de privatização, levando de cambulhada a respeitabilidade do Banco Central como xerife da moeda...

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