São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Ex-nora de Liz Taylor conta o que é ter Aids

AILEEN GETTY
PARA O "LADIES' HOME JOURNAL"

Hoje, não consigo mais dormir a noite inteira. A Aids me acorda a cada 15 minutos.
Minha família é uma das mais ricas dos Estados Unidos e já fui nora de Elizabeth Taylor.
Eu deveria ter tudo na vida. Em vez disso, hoje, aos 36 anos, luto para aproveitar cada dia, antes que essa doença pavorosa me mate.
O pior é saber que eu mesma sou responsável por ela: me infectei numa relação sexual sem camisinha, num romance impensado.
É estranho, mas às vezes me pergunto se eu mesma não provoquei tudo isso. Quando era criança, às vezes ficava imaginando que meus pais me amariam mais se eu estivesse a ponto de morrer.
Minha família era tão desequilibrada quanto rica. Meu avô era J. Paul Getty, o bilionário magnata do petróleo e patrono das artes que construiu o famoso museu J. Paul Getty, na Califórnia.
Meu pai, J. Paul Getty Jr., deixou minha mãe, Gail, em 1964, quando eu tinha 5 anos. Ele era viciado em heroína.
No final da adolescência, viciei-me em cocaína e passei anos entrando e saindo de clínicas de recuperação.
Em 1978, conheci Christopher Wilding e seu irmão Michael Jr., filhos de Elizabeth Taylor. Apaixonei-me por Chris.
A partir do momento em que ele me apresentou a Liz Taylor, fiquei íntima dela; até hoje a chamo de "mom" (mamãe). Foi por intermédio dela que me envolvi na luta contra a Aids. Durante quase um ano, antes de me contaminar, eu a ajudei no trabalho que desenvolve com organizações de combate à Aids no mundo inteiro.
Chris e eu nos casamos em 1981, quando eu tinha 21 anos. Depois de sete abortos espontâneos desastrosos, adotamos nosso filho Caleb. Em 1984, engravidei e tivemos nosso segundo filho, Andrew. Minha vida parecia ser perfeita -até que cometi o erro.
Em agosto de 1985 tive um caso extraconjugal breve. Fiz a pergunta decisiva, mas meu amante mentiu: jurou que era saudável, quando já sabia que tinha o HIV. Por que não insisti que ele usasse camisinha? Senti um medo idiota de ser rejeitada se o fizesse. Vou me arrepender pelo resto da vida.
Duas semanas depois do fim do caso, em um evento contra a Aids em Paris, acordei com o suor escorrendo. Imediatamente pensei: "Suores noturnos. Peguei Aids".
Quando confessei tudo a Chris, ele ficou magoado. Contei tudo a "mom", que se mostrou compreensiva e carinhosa.
Por uma ironia do destino, o homem que me contaminou ainda está saudável. Durante os três primeiros meses meus testes deram negativo, mas um dia o médico ligou dizendo "Seu último teste deu positivo. Lamento muito, Aileen".
Não havia para onde fugir, nenhuma escuridão para me refugiar.
A primeira coisa que fiz foi procurar "mom". Contei-lhe tudo e ela me abraçou longamente. Ela promoveu uma reunião em que meus médicos explicaram o diagnóstico a minha família, que recusou-se a acreditar.
O que me magoou mais foi que Chris passou a sentir medo de mim. Quando eu o tocava, ele se afastava. Me senti doente, assustada e com raiva -com tanta raiva que, no início de 1986, fugi para Nova York com meus filhos e voltei a usar cocaína.
Em 1988, Chris abriu um processo pedindo a guarda de Caleb e Andrew. A perda das crianças foi mais dolorosa que qualquer coisa.
Em 1989, voltei a viver em Los Angeles e comecei a reconstruir minha vida. Então a Aids começou a fechar o cerco em torno de mim.
Fiquei doente, com algo semelhante à esclerose múltipla. Isso significava que eu já estava com Aids total, mas de certo modo me senti aliviada. Era como se nos quatro anos anteriores eu tivesse estado apenas esperando o pior.
Não demorei a descobrir a humilhação e o isolamento que os aidéticos sofrem. Certa vez uma fisioterapeuta simplesmente se recusou a me tratar -ela nem quis me dar a mão para se despedir.
Já senti a vergonha de ver enfermeiras usando luvas de borracha perto de mim quando não seria necessário -para me trazer uma bandeja de comida, por exemplo. Me senti suja, feia, desumana.
Eu queria manter segredo sobre minha guerra particular, mas em 1991 uma emissora de TV quis fazer um programa sobre meu caso.
Não podia impedir. Dei uma entrevista. Menti, dizendo que tinha pego Aids em uma transfusão.
Tive que contar a Caleb e Andrew antes de o programa ir ao ar. Uma noite, na cama, disse a eles que estava com Aids. "Vai melhorar?" perguntou Caleb. "Não", respondi. "Não há tratamento. Um dia mamãe vai morrer".
Caleb e Andrew estão com 12 e 10 anos. Chris e eu temos a guarda conjunta deles, e eles passam os fins-de-semana comigo. Assistimos a filmes e montamos quebra-cabeças.
Meus pais só admitiram minha doença em 1992, quando quase morri de uma infecção pulmonar.
Sou uma sobrevivente da Aids -se é que isso existe. A expectativa média de vida depois do diagnóstico de Aids total é de 18 meses; eu já tenho o HIV há dez anos e Aids, há quase seis. Tem sido uma batalha constante, mas estou convencida de que a sobrevivência é resultado de minha própria garra.

Depoimento a KATHRYN CASEY, da "Ladies' Home Journal"

Tradução de Clara Allain

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