São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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A Argentina está cansada de Cavallo

RUDIGER DORNBUSCH

Todo mundo está cansado das periódicas crises argentinas. O ministro Cavallo tem razão -o presidente Menem precisa dar um "não decisivo à corrupção no governo, na política e na administração pública.
Ele tem razão: a Argentina não pode se dar ao luxo de tirar um descanso dos ajustes e da reestruturação. A situação é intensamente vulnerável, o governo está falido, a economia continua na UTI.
É verdade que as reformas e a reestruturação avançaram muito nos últimos quatro anos, mas até agora tudo isso possui mais a natureza de uma experiência do que de um estilo de vida. A Argentina ainda não é o Chile, embora tenha uma chance realmente boa de chegar lá. Se o fizer, que não reste dúvida alguma: o crédito será do ministro Cavallo.
Sim, existe uma "fadiga Cavallo". O país parece estar farto do período de austeridade, longo demais, de fazer novos esforços todos os dias, de todas as manhãs ser obrigado a se abster de todas as coisas que constituíram a Argentina nos últimos 50 anos (e que a empurraram para baixo).
O país também está cansado das crises políticas periódicas em que o ministro, abertamente ou indiretamente, ameaça renunciar. Trata-se de uma potencial ameaça, porque os mercados financeiros mundiais têm estopim curto -"Cavallo fora do governo" seria o código para cancelar a Argentina, sem mesmo esperar para saber quem o teria substituído.
E isso não se aplica apenas aos investidores em Londres e Nova York -os próprios argentinos já não sentem confiança em qualquer nova experiência. Essa verdade foi sentida só recentemente.
Não existe, na Argentina de hoje, qualquer alternativa a Cavallo. São palavras contundentes -será que o país não conta com muitos financistas de peso? O nome óbvio que seria aventado nessa hipótese é o de Roberto Alemann, que serviu com distinção em vários governos militares.
É verdade que Alemann inspira confiança enquanto praticante de uma política monetária bastante rígida; ele até publica um jornal em língua alemã. Não há dúvidas sobre sua completa integridade.
Mas o fato é que ele não tem nenhuma equipe com a qual começar. O fato de haver servido um quarto de século atrás não representa credencial suficiente para quem pretende conduzir a Argentina até o século 21. E há muitos outros possíveis candidatos, é claro -advogados, professores universitários, empresários e a longa lista dos ministros que já fracassaram anteriormente.
Na verdade, todo mundo tem um candidato com ótimas idéias para fazer melhor. A Argentina já teve cem ou mais ministros da Economia neste século. Esse grande número nos leva a crer que o trabalho não é fácil; a política é tão viciada porque joga-se com trunfos de tão baixo valor.
Ademais, a transição é uma questão delicada. Já vimos isso antes na Argentina e, mais recentemente, no México. Novas pessoas podem ter novas idéias e no momento a Argentina não está em condições de adotar novas idéias.
Ademais, pessoas novas precisam aprender a fazer seu trabalho e agora não há tempo para isso. Por enquanto, a Argentina precisa trabalhar com o que tem; felizmente, o que ela tem no momento é a melhor equipe disponível.
A grande figura predominante da Segunda Guerra Mundial foi Churchill -com sua persistência e teimosia de buldogue, ele infundia confiança e levou a Grã-Bretanha e os Aliados até a vitória. No entanto, quando chegou a hora das eleições, Churchill foi derrotado.
O país se sentia grato a ele, mas estava cansado; queria uma mudança. A Argentina se encontra nesse mesmo estado de ânimo, e Menem também. Mas a Argentina não está pronta para uma mudança. A maior parte do trabalho de consolidação, deflação e saneamento bancário ainda está por fazer.
Será preciso esperar mais alguns anos para fazer o novo modelo pegar. A Argentina quer vencer economicamente, Cavallo quer ser presidente -algum dia. Os dois precisam consultar um psicólogo conjugal para assegurar que seu relacionamento perdure e para pôr fim às brigas constantes.
Não há lugar para crises intermitentes: os investidores no exterior não irão investir se o quadro político não estiver claro, e sem investidores estrangeiros a Argentina irá naufragar.
É claro que "Cavallo precisa ficar" não poderá ser a resposta eterna. Em algum momento, o próprio Cavallo precisa tirar um descanso antes de tentar chegar à Presidência. Está claro que ainda faltam alguns anos para tudo isso.
Os objetivos imediatos são dois: a deflação precisa trazer a competitividade de volta, e desse modo lançar as bases para o crescimento. Especificamente, os salários e preços precisam cair cerca de 20%.
Isso deve acontecer, de preferência, sem recessão; é claro que quanto mais forte for o compromisso com o regime monetário atual e a confiança que se sente nele, mais fácil e rapidamente isso irá acontecer.
O outro problema é sanear os bancos, tarefa que costuma surgir após uma hiperinflação, em que o sistema bancário do país acaba crescendo demais. O ajuste é duro porque o governo está falido.
Sem um saneamento do sistema bancário, as corridas ao banco (a Miami) continuarão sendo um problema endêmico, e o crédito produtivo não virá para dar suporte ao crescimento. Esses problemas podem ser resolvidos, e quando tiverem sido resolvidos a Argentina estará a caminho de um desempenho em estilo chileno.
Um recado contundente deveria ser enviado ao presidente Menem, exortando-o a se distanciar categoricamente de toda a corrupção, fazer os políticos negativistas parar de atrapalhar Cavallo e tentar fazê-lo tropeçar, acabar com as conspirações e a divisão de ministérios, os socorros a províncias, as obras públicas desnecessárias, os modelos alternativos fracassados e assim por diante.
E um recado deveria ser enviado a Cavallo, aconselhando-o a ficar calmo, pois, se ameaçar com uma renúncia que só provocaria a queda livre da Argentina, ele só perderia. Se o barco afundar ninguém sairá ganhando, porque não existem salva-vidas para a Argentina.
Tradução de Clara Allain

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