São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Guerra na Bósnia revela a impotência da Europa

O fracasso europeu não é técnico nem militar, mas político

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O principal ensinamento da guerra na Bósnia não é a violência e a barbárie exercidas em nome da purificação étnica. Pois, se é indiscutível que o agressor foi o Estado sérvio e os agredidos foram em primeiro lugar os croatas de Krajina e da Eslavônia Oriental, depois os bósnios das regiões ocupadas pelas milícias sérvias da Bósnia, é fato também que essa agressão acaba de desencadear reações croatas e, ao que tudo indica, selar um acordo entre os dois ditadores nacionalistas, Milosevic e Tudjman, para partilharem a Bósnia, que permanece relativamente multiétnica e multicultural, sobretudo em Sarajevo. Aqueles que viram nessa guerra a confrontação de culturas e nações reconheceram afinal seu erro, mas, depois de mais de três anos de guerra, o que está cada vez mais em jogo são exatamente as estratégias nacionalistas.
O principal ensinamento dessa guerra é bem diferente: os europeus, que participaram ativamente nos conflitos do Golfo e da Somália, foram incapazes de assumir suas responsabilidades e se recusaram a enfrentar o problema surgido no centro da Europa. Apesar do acidente que custou a vida a um dos principais negociadores americanos, foi a diplomacia americana que retomou a iniciativa das negociações, como bem o disse o senador Dole. A estratégia da ONU e da Europa voltou-se contra si própria, pois os capacetes azuis, proibidos de travarem combate, são agora reféns humilhados ou então representam uma força de oposição à defesa militar bósnia.
Podemos pensar que a tentativa européia de impor um plano de paz, isto é, de partilha da Bósnia, seja melhor que a idéia americana de armar os bósnios -idéia, aliás, que não encontrou até agora nenhuma repercussão prática. Mas, se quiséssemos impor o projeto do Grupo de Contato, seria necessário fazê-lo pelas armas, defendendo hoje Gorazde, como deveríamos ter defendido ontem Srebrenica. Os peritos militares não duvidam da fraqueza das milícias sérvias. Vimos, aliás, que a Sérvia não reagiu diante da reconquista da região de Krajina pelo exército croata e nada fez, em particular, diante de Vukovar destruída.
O fracasso europeu não é nem técnico nem militar, mas político. Mais grave ainda, é um fracasso da vontade, e os responsáveis por ele são os membros do Conselho de Segurança, principalmente aqueles que compõem o Grupo de Contato. Os grandes países que não integram a comissão permanente do Conselho de Segurança, como a Alemanha e a Itália, mostraram-se ainda mais reticentes em relação à Bósnia do que a França e a Grã-Bretanha, dois países que optaram por paliativos ao constituir uma força de reação rápida, mas inativa, sob o comando da ONU.
A questão principal é a seguinte: de onde vem essa ausência de vontade? O antigo primeiro ministro polonês, Tadeusz Mazowiecki, comparou a atitude européia à conduta daqueles que, no início da ditadura de Hitler, não queriam morrer por Danzig e foram por isso co-responsáveis pela expansão agressiva do Reich hitleriano.
Essa ausência de vontade tem suas origens na profunda crise por que passa a idéia européia. Esta última identificou-se à liberdade do movimento dos capitais e ao domínio do Bundesbank, e as classes sociais mais ameaçadas ou menos ricas passaram a reconhecer na Europa uma ameaça cada vez maior. Pela primeira vez na história, quase todos os grandes países europeus, se fossem chamados a se pronunciar por meio de um referendo, votariam contra a Europa. Isso vale para a Alemanha e seu apego febril ao marco, para a Grã-Bretanha sempre insular, para a França atormentada por uma taxa de desemprego elevada, para a Espanha, que por tanto tempo foi favorável à Europa, mas não o é mais, e finalmente para a Itália, país pró-europeu somente por hostilidade a seu próprio sistema político.
A idéia de uma Europa federal deixou mesmo de ser evocada, e a concepção de Jacques Delors de uma Europa política e social tanto quanto econômica aparece aos olhos da maioria como desmentida pela realidade. A Europa construiu a si mesma ao mesmo passo que destruía os controles nacionais da economia, mas tudo ocorreu como se o capitalismo mundial, após se valer do disfarce europeu para pulverizar as democracias sociais fundadas na intervenção do Estado, deixasse cair a máscara para defender seus verdadeiros interesses, ou seja, um mercado simultaneamente globalizado e dominado pelos reais centros de decisão, representados pelos pólos bancários e industriais predominantes: os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha.
Daí o recuo da idéia européia, tanto entre os partidários do livre-comércio mundial quanto entre os assalariados ou os setores ameaçados pela concorrência dos novos países industriais.
Como essa Europa, que duvida dela mesma, poderia tomar parte numa ação política que exige vontade e unidade? Seu objetivo é puramente econômico: criar uma moeda única, isto é, conferir a um certo número de países europeus uma certa capacidade de decisão na faixa cambial determinada pelo marco. O resto é má literatura, que sustenta cada vez menos os discursos dos políticos.
O drama bósnio pôs a descoberto essa impotência da Europa; ele a reforça ainda mais pelo fato de revelar a impotência das grandes potências européias para responder às humilhações sofridas por seus soldados.
Na Bósnia, não é apenas a concepção européia da vida política e social que se mostra vencida e menosprezada; é também a impotência da Europa para defender os valores por ela proclamados com uma convicção mais aparente do que a de fato demonstrada. Esse fracasso terá um peso decisivo na repartição do poder entre os três pólos da economia mundial no início do próximo século.

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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