São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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O vírus da alta cultura

DANIEL PIZA; MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Um matemático aplica a teoria do caos a um estudo de população, enquanto um casal de acadêmicos discute a poesia de Byron. Um "serial killer" lê os pensamentos de Wittgenstein entre um assassinato e outro. A pintura expressionista abstrata de Pollock aparece no cenário de um videoclipe.
Esses são os enredos de alguns produtos culturais recentes -a peça "Arcadia", do britânico Tom Stoppard, o romance "Philosophical Investigation", do também britânico Philip Kerr, e o clipe "Scream", de Michael Jackson- que mostram uma tendência crescente nos anos 90: a contaminação da indústria de entretenimento por personagens e conceitos da chamada "alta cultura".
Embora complexos e abstratos, esses personagens e conceitos cada vez menos se restringem ao consumo de iniciados. Distinções abruptas entre alta e baixa cultura perdem sentido -e simplificações como "apocalípticos e integrados" já não resumem as posições diante da indústria cultural.
O próprio Umberto Eco, criador dos conceitos de "apocalípticos" (os que condenam a cultura de massas) e "integrados" (que vêem na massificação uma forma de democratização), é o autor de um dos livros que marcam a ruptura da fronteira: "O Nome da Rosa", um romance policial que tem como cenário um mosteiro medieval e como tema a filosofia aristotélica -e que se tornou um surpreendente best seller mundial em 1986.
Desde então os produtos se multiplicaram. Não apenas na literatura, mas em todas as artes. Só que agora é o entretenimento que procura a erudição, e não o contrário. Ao mesmo tempo, nas universidades, jovens professores se debruçam sobre temas que antes eram desprezados pelo meio acadêmico, como o rock (leia entrevista ao lado) ou a música pop.
O que surge, sobretudo, é um novo campo para o entretenimento. Para contar a história de uma mulher incompreendida, o cinema recorre à biografia de T.S. Eliot em "Tom e Viv", de Briam Guilbert. O que importa, no relato de seu casamento, é menos a poesia de Eliot do que a possibilidade de romancear sua vida.
A mesma Hollywood que sempre pretendeu fugir da sofisticação adota agora, como estratégia, a conquista desse verniz intelectual. O próximo projeto da atriz americana Meg Ryan, por exemplo, é filmar a vida da poeta suicida Sylvia Plath, enquanto o relacionamento pouco convencional entre o crítico literário homossexual Lytton Strachey e a pintora Dora Carrington, do elitista círculo de Bloomsbury, ganha a forma de drama em "Carrington", que estréia este mês nos cinemas do país.
Na literatura, ocorre outro fenômeno: a filosofia se torna um tema usual. Entre os livros mais vendidos no Reino Unido, nos últimos dois anos, quase invariavelmente existe um autor que transformou a vida de um filósofo, ou seu sistema de pensamento, em romance.
O caso mais gritante é o do escritor Philip Kerr e seu "A Philosophical Investigation" (Uma Investigação Filosófica), em que o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein é o mentor intelectual de um assassino -um homem que se diverte enviando à polícia mensagens cifradas com referências cultas. "Descartes, o pai da filosofia moderna. Eu tenho que aniquilá-lo. Ele não deve viver. Mato, logo existo" -diz uma delas.
Wittgenstein, por sinal, tem sido o filósofo mais inspirador. No mês passado noticiou-se que o comediante americano Steve Martin está escrevendo um roteiro de filme sobre o autor do "Tractatus Logico-Philosophicus".
Outro exemplo é "The Thought Gang" (A Gangue do Pensamento), de Tibor Fisher, sobre um filósofo que abandona sua vida acadêmica para se tornar ladrão de bancos, sem abandonar suas preocupações com os rumos do pensamento ocidental.
Ou ainda, em casos mais extremos, há a estratégia de "Quando Nietzsche Chorou", de Irvin D. Yalom, recém-editado no Brasil pela Ediouro: um "thriller intelectual" sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche e o nascimento da psicanálise na Viena do final do século passado.
Mesmo quando deixa de ser um objeto de ficção, a filosofia gera um novo tipo de best seller. Manuais didáticos, como "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaardner, e "Pooh and the Philosophers", de John Tyerman, oferecem ao faminto público um bom bocado de teorias mastigadas.
Aqui a estratégia lembra a do único exemplo brasileiro dessa interface entre cultura elitista e popular: o best seller Rubem Fonseca. Num de seus romances, "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos", Fonseca converteu um escritor pouco conhecido pelos brasileiros -o russo Isaac Bábel- em personagem. E ninguém se incomodou com isso.

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