São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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A coincidência rara de um encontro inteligente

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O encontro das amigas Hannah Arendt (1906-1975) e Mary McCarthy (1912-1989) foi dessas coincidências raras. Foi antes a reunião de duas inteligências do que a troca de simples confidências entre duas amigas.
A primeira, filósofa judia alemã, autora de "A Condição Humana" e "As Origens do Totalitarismo", aluna e amante de Heidegger na juventude, teve grande influência na formação do pensamento ocidental do pós-guerra.
A segunda, nascida em Seattle (EUA), foi uma das mais destacadas e polêmicas escritoras e ensaístas americanas deste século, autora de "Memórias de Uma Menina Católica" e "O Grupo". Elas se conheceram em 1945, em Nova York, onde Arendt foi viver depois de fugir da Alemanha nazista. As cartas abrangem um período que vai de 1949 até 1975 e compõem um volume de quase 400 páginas de puro conteúdo.
A correspondência entre Arendt e McCarthy está longe de ser a reunião superficial de fofocas que se esperaria de cartas entre mulheres. São textos de duas intelectuais cultas, politicamente engajadas e dedicadas a compreender o mundo em que viveram.
Enquanto McCarthy rodava a Europa e os Estados Unidos, mudando-se a cada novo casamento (foram quatro), Arendt permanecia em Nova York ou percorria os EUA dando cursos em universidades. Daí as cartas trocadas e as visitas que faziam uma à outra.
Elas trocavam idéias, sobretudo. Discutiam temas amplos, recorriam uma à outra para esclarecer seus conflitos pessoais e os de sua época. "Uma coisa sobre a qual estou ansiosa por falar com você", escrevia McCarthy, "é um problema ligado ao romance, que é sobre boêmios e a dogmatização da ignorância. Ou sobre a dilacerada ciência da epistemologia".
Uma servia de estímulo à outra, embora fosse visível a diferença de cultura e personalidade entre elas. McCarthy, que se preocupava em escrever cartas "à altura" da amiga, diz a Arendt: "Você é um estímulo e um incentivo ao trabalho árduo e ao pensamento". Arendt, por sua vez, confessa sua admiração pela inteligência "essencialmente simples" de McCarthy.
O livro é interessante também porque abrange uma gama de gente conhecida e de acontecimentos políticos e culturais de peso das décadas de 50, 60 e 70. Do combate ao comunismo e da caça às bruxas nos EUA, à guerra do Vietnã. Da revolução estudantil na França de 68, à organização do combate ao anti-semitismo.
A partir de uma ponderação sobre a vitória de Nixon, por exemplo, McCarthy elabora todo um pensamento a respeito da sociedade de massas: "A vitória de Nixon, se for para valer, é horrível, por demais orwelliana para imaginar; significaria que a sociedade de massas é uma realidade, o que ninguém aqui, nem mesmo os que denunciaram seus sintomas, nunca acreditou, a não ser no discurso". "A idéia de que as pessoas são influenciadas, não por suas paixões ou interesses, mas por técnicas publicitárias, isto é, pelo condicionamento em massa, manda para o espaço todas as minhas concepções da vida americana. (...) Como bem viu D.H. Lawrence, a noção do casalzinho e do casamento é o começo da sociedade de massas."
As relações de amizade e de trabalho de ambas -Arendt e McCarthy- formavam um largo círculo de nomes hoje famosos: Alberto Moravia, Randall Jarrell, Karl Jaspers, Lilian Hellman, Robert Lowell, W.H. Auden, Stephen Spender, entre outros. Sobre todos eles há referências curiosas.
O aspecto mais pessoal da correspondência fica por conta de Mary McCarthy, que se encarrega de dar aos relatos a intensidade ou a intimidade que falta ao tom mais reservado de Arendt. De contidas no início, as duas vão ficando, com o passar do tempo, mais afetivas no tratamento, nos cumprimentos e despedidas.
Mesmo assim, McCarthy, sempre mais aberta quando trata de seu relacionamento com os homens, por exemplo, só fala de sexo uma ou duas vezes no decorrer do volume. Por respeito à reserva de Arendt, pelo que se deduz. Sobre seu romance "A Charmed Life", McCarthy escreve à outra:
"Meu romance está avançando, mas você pesa horrivelmente em minha consciência cada vez que aparece sexo. Você me puxava pelo cotovelo dizendo 'Pare' durante uma cena de sedução que acabei de escrever. E suas reprimendas imaginárias foram tão eficazes que reescrevi toda ela para adotar o ponto de vista do homem, em lugar do da heroína. Mas, mesmo assim, temo que você não goste".
McCarthy e Arendt têm opiniões parecidas e muito particulares sobre ser mulher e sobre algumas mulheres contemporâneas suas. McCarthy divide a feminilidade em positiva e negativa:
"Dwight esteve aqui com a nova esposa. Finalmente entendi. Ela é uma pateta, porém feminina em sentido positivo, namora-o, é vivaz, cheia de pequenas graças, que para ele são misteriosas, opiniões responsáveis e fantasias. O contraste com a coitada da Nancy é muito forte. Nancy representava a feminilidade negativa -cautela, consciência, valor moral, economias soturnas".
Simone de Beauvoir e a antropóloga Margaret Mead são alvos de duras críticas da dupla McCarthy e Arendt. Hannah Arendt achava Mead "um monstro". Referia-se a ela como "Mead", porque "é melhor chamá-la só pelo sobrenome, não por ser ela um homem, mas porque certamente não é uma mulher".
A dupla achava Simone de Beauvoir uma tonta, que só conseguia algum destaque por andar com Sartre, por quem Arendt também não tinha muita simpatia.
A longa amizade entre McCarthy e Arendt segue uma linha constante no tempo. Há uma única queixa de uma à outra, rapidamente esclarecida e resolvida, quando Arendt se desculpa, dizendo sobre si mesma: "O que sei é que não sou sensível, antes obtusa, em todas as questões puramente psicológicas. Mas isto você já deve saber há muito tempo".
As duas se corresponderam até a morte de Arendt, em 1975. Sobre envelhecer e morrer, Arendt já escrevia à amiga, em 1973: "Devo admitir que me preocupa este inexorável processo de desfolhação (ou desmatamento). Como se envelhecer não significasse, como disse Goethe, 'a gradual retirada da aparência' -que não me preocupa- mas a gradual (bastante súbita) transformação de um mundo com rostos familiares (amigos ou inimigos, não importa) numa espécie de deserto, povoado por rostos estranhos. Em outras palavras, não sou eu que me retiro, é o mundo que se desfaz -proposição totalmente diferente".

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