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A mitologia de um pessimista
MANUEL DA COSTA PINTO
Em prefácio escrito para o livro em 1958 -e incluído na edição da Record-, o próprio Camus afirmava: "Se, apesar de tantos esforços para construir uma linguagem e fazer viver mitos, eu não conseguir um dia reescrever 'O Avesso e o Direito', nunca terei conseguido nada. Na verdade, porém, é como se ele nunca tivesse deixado de se repetir. Nas cinco pequenas narrativas que compõem "O Avesso e o Direito, reconhecem-se uma abundância de lugares, temas e mesmo frases inteiras, que reaparecerão em criações tão diferentes como "O Mito de Sísifo e a peça "Calígula. Nessa obra, que oscila entre a ficção e o ensaio, Camus cria "cenas e personagens, à maneira de um conto, mas logo mergulha esses quadros num imobilismo completo, cedendo lugar à voz de um narrador que escande cada impressão e cada esboço de ato numa meditação. É assim em "Com a Morte na Alma, relato de uma viagem de Praga a Vicenza no qual aparece um tema caro a Camus: a revolta e o odor de morte despertados pela indiferença do mundo, pela beleza de uma paisagem e pela volúpia inumana que governa a explosão solar dos meio-dias e os odores que brotam da noite. Em "Amor pela Vida, ele aprofunda a sensualidade desse sentimento da morte, ao descrever um café na cidade de Palma (Espanha), em que uma cantora leva ao delírio espectadores já embotados pelo álcool: "Como uma deusa imunda saindo da água (...), no meio da alegria turbulenta que a cercava, era como a imagem ignóbil e exultante da vida, com o desespero de seus olhos vazios e o suor espesso de seu ventre.... O arrebatamento diante da beleza e o gosto acre que sucede a cada gozo criam, assim, o jogo de alternâncias em que se movem as personagens de Camus. Esses temas reaparecerão em diversas obras do escritor, sobretudo em "Núpcias (1939) e "O Verão (1954), que celebram, por meio de retratos-ensaios de cidades da Argélia (sua terra natal), um universo de plenitude sem esperança, "cujo esplendor e cuja luz falam, sem trégua, de um Deus que não existe. Num de seus livros mais conhecidos -o ensaio "O Mito de Sísifo (1942)-, Camus daria uma forma menos pessoal a esta alternância entre a exaltação sensual e a revolta metafísica que lhe é decorrente. Ao falar do "sentimento do absurdo, de um "divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, Camus coloca o suicídio como "o único problema filosófico verdadeiro -que consiste em saber se a vida vale a pena ser vivida, levando-o a elaborar uma ética trágica de aceitação da vida e de suas tensões, de seus avessos e direitos (já que o suicídio apenas suprimiria o absurdo, sem resolvê-lo). Na própria formulação da noção de absurdo, Camus repete uma passagem de "Amor pela Vida em que o narrador, diante do claustro gótico de Palma, da luz dourada de suas pedras e do silêncio de seu pátio, descobre um mundo que não é feito na medida do homem -um mundo surdo a anseios espirituais, afinal derrisórios, e em que todo milagre é sem transcendência. O filósofo Jean-Paul Sartre, numa apresentação do romance "O Estrangeiro, observou que Camus se inscrevia, assim, na tradição dos grandes moralistas franceses, do pessimismo clássico que duvida do alcance da razão e se limita a descrever nossa condição miserável, mortal. Entretanto, a forma dos relatos de "O Avesso e o Direito colocam Camus nessa linhagem de maneira ainda mais intensa. A escrita pessoal e fragmentária do ensaio nasce com Montaigne, no século 16, como uma descoberta do sujeito moderno, em oposição à ordem metódica e generalizante dos tratados da escolástica medieval. Daí o tom inicialmente subjetivo, de construção de si mesmo, que posteriormente evolui para a "anatomia do coração humano de autores como Pascal, La Rochefoucauld e Chamfort. No ensaio dos moralistas, portanto, a necessidade de inventar a dimensão nova do eu por meio de um estilo extremamente concentrado e singular -o aforismo, ou "phrase-nom (frase-nome), na formulação de Roland Barthes- acaba aproximando o ensaio da narrativa ficcional. A partir disso, compreende-se melhor a larga utilização que Camus faz de contextos "literários" na elaboração dos silogismos de "O Avesso e o Direito" -livro no qual se reconhece, sobretudo, sua dívida para com Chamfort, o filósofo que fizera a crítica dos costumes do século 18 por meio dos aforismos narrativos de "Caractères et Anecdotes. A recente publicação de "O Primeiro Homem" (Nova Fronteira), romance autobiográfico que Camus deixou inacabado, só vem reforçar a hesitação entre ficção e reflexão que permeia sua obra, aproximando-a da tradição fundada por Montaigne. Todo o episódio -à primeira vista fictício- de "Entre o Sim e o Não (segundo texto de "O Avesso e o Direito"), por exemplo, está reproduzido em "O Primeiro Homem" (as reminiscências do bairro árabe de Argel, a lembrança de um pai morto na Primeira Guerra e o mutismo de sua mãe). Com isso, percebe-se que, mais do que um escritor que dava contornos literários a raciocínios abstratos (como o Sartre de "A Náusea"), Camus criava uma mitologia pessoal e intransferível, reescrita a cada obra, fosse ela romanesca ou filosófica. Por intermédio da subjetividade intransponível do ensaio, enfim, Camus criou um mundo de alternâncias (a beleza e a miséria, a fatalidade e a revolta), cuja perenidade significava uma recusa do sentido dinâmico da história, um pessimismo que reproduzia, sob o sol mediterrâneo, o mundo estático dos moralistas clássicos. Texto Anterior: A coincidência rara de um encontro inteligente Próximo Texto: O cheiro forte da morte Índice |
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