São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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A utopia descabelada

VINÍCIUS TORRES FREIRE
DE PARIS

O filósofo Gérard Lebrun, do conselho da École Normale Supérieur de Paris, é um dos principais historiadores contemporâneos da filosofia. Por muitos anos foi professor na Universidade de São Paulo. Publicou grandes livros sobre a filosofia alemã, como "Kant e o Fim da Metafísica" (Martins Fontes) e "O Avesso da Dialética: Hegel à Luz de Nietzsche" (Companhia das Letras).
No curso da Funarte, Lebrun fará duas conferências, em novembro: "O Subsolo da Crítica" e "Sobre a Tecnofobia". Foi principalmente sobre este segundo tema que ele falou à Folha , em Paris.
Lebrun pretende analisar na segunda conferência o pensamento que "amaldiçoa" a técnica e a ciência ou, pelo menos, a forma que elas assumiram hoje. Para os "os dois grandes partidos dos intelectuais tecnófobos", segundo Lebrun, a técnica teria deformado um "projeto autêntico" da ciência ou seria uma vocação antiga do pensamento para a dominação e controle (tanto da natureza como dos seres humanos).
(Vinicius Torres Freire)

Folha - O sr. diz na apresentação de sua conferência sobre a "tecnofobia" que a técnica está na base do que se chama hoje a crise da razão. O que o sr. chama de "tecnofobia"?
Gérard Lebrun - A tecnofobia é esta desconfiança que se tem da técnica, do seu avanço, especialmente das técnicas que colocam em perigo o equilíbrio ecológico, como as tecnologias nucleares. Tecnofobia é essa desconfiança a priori, esse ódio contra a técnica.
Folha - Quem são os tecnófobos? Filósofos, ambientalistas?
Lebrun - O Greenpeace (risos).
Folha - O sr. acha ridículas as manifestações do Greenpeace? E os filósofos tecnófobos?
Lebrun - Claro, os filósofos também. Não diria que as manifestações do Greenpeace são ridículas, mas acho que seus membros escolhem bem os adversários. Eles demoraram a se manifestar contra os testes nucleares chineses e o fizeram de maneira modesta. É uma associação que não leva em conta os aspectos que estão em jogo, certos imperativos políticos que pesaram na decisão francesa de retomar os testes nucleares.
Você deve estar percebendo que sou a favor destes testes. Há uma nova situação internacional, que é preciso levar em conta. Claro, não existe mais risco imediato de uma guerra atômica, mas há Saddam Hussein, que desenvolvia uma bomba nuclear antes da guerra do Golfo, e hoje em dia há 15 países que têm ou podem desenvolver armas atômicas. E, se nós pensamos que essas armas podem estar nas mãos de gente como Khadafi ou Hussein, é preciso tomar certas precauções, não é?
Folha - É a mesma posição de Jacques Chirac.
Lebrun - Mas, você sabe, a posição de Chirac é orientada pelo seu conselho diplomático, que tem estudos e trabalhos notáveis sobre a situação internacional. São analistas muito sérios. É muito fácil para Hussein obter armas bacteriológicas. E, depois que a URSS foi desmantelada, aumentou muito o perigo de que grupos terroristas possam obter armas miniaturizadas. Chernobyl dá motivos para todo mundo se tornar tecnófobo.
Folha - Gostaria de voltar aos filósofos tecnófobos. Em seu texto, o sr. diz que alguns dos tecnófobos consideram que a simbiose moderna entre ciência e técnica seria reveladora de uma vocação antiga do pensamento. O sr. está falando dos filósofos de Frankfurt?
Lebrun - Sim, você tem razão em mencionar esses pensadores. Eu não pensava exatamente em Adorno, mas em Marcuse. Pensava ainda em gente como Oswald Spengler, cujos trabalhos fizeram bastante barulho nos anos 30.
Foram os cientistas que começaram a pensar a questão. A relação entre técnica e ciência é um problema sobre o qual gente como Einstein, Oppenheimer e mesmo Teller (cientistas nucleares, que desenvolveram ou trabalharam no projeto da bomba americana) já havia refletido de maneira muito séria. A reflexão sobre os perigos do avanço técnico começou seriamente neste momento. Você sabe que Oppenheimer não queria que fosse construída a bomba de hidrogênio. Foi Teller, que conhecia bem a URSS de Stalin, que colocou o projeto para funcionar.
Folha - Teller era um tanto paranóico.
Lebrun - Sim, as pessoas de esquerda têm um péssima opinião sobre ele. Mas era um homem muito impressionante, se correspondia com as pessoas importantes da época. Falou-se muito de suas posições contrárias às de Oppenheimer, de como era orientado por motivos ideológicos na sua decisão favorável à bomba de hidrogênio, mas pode-se dizer que Teller era mais realista em relação aos problemas, era um judeu de Budapeste que teve uma juventude muito movimentada, digamos...
O que queria dizer, enfim, é que naquele momento se perguntava se essa ciência a serviço de uma técnica que pode ser radicalmente destrutiva era um desvio do projeto científico. Será que a ciência foi absorvida por uma tecnologia que deforma seu projeto, sua vocação autêntica? Este é o primeiro diagnóstico dos tecnófobos.
A ciência de hoje é a realização de um projeto da verdadeira ciência, do saber, que vem desde os gregos, ou, ao contrário, é uma deformação monstruosa? Estes são os dois partidos que distingo, em geral, entre os filósofos que chamo de "tecnófobos". Talvez o termo seja muito forte. Podemos chamá-los também de misotécnicos.
Folha - Mas, voltando aos frankfurtianos...
Lebrun - É um pensamento frequentemente confuso o de Adorno e o de Marcuse. Tenho uma tendência a preferir o de Horkheimer e o de Habermas... Não digo que Marcuse seja desinteressante. Eles tiveram o mérito de perceber, de sentir coisas que iriam se tornar importantes, como a questão da técnica. Mas o marxismo de Marcuse era muito pouco marxista. Como ser marxista condenando a razão técnica? Isso me parece incompatível com o pressuposto de Marx. A condenação marcuseana do maquinismo, da razão técnica, vai muito longe. Pode-se perguntar o que ele iria colocar no lugar, na sua utopia, se não se quisesse voltar à selvageria original.
Folha - Não seria possível então uma outra ciência, um outro destino da ciência?...
Lebrun - Mas no país das fadas tudo é possível. Pode ser que me falte imaginação, mas não vejo como possa haver. Se falamos de ciências determinadas, o que pode ser uma outra mecânica quântica? Marcuse ia a estes extremos, que não podem ser chamados de outra coisa que utópicos, no sentido pejorativo do termo.
Folha - Quando o sr. falava do perigo da técnica, o exemplo era sempre o perigo nuclear. E a informatização?
Lebrun - Sou cada vez mais sensível ao problema da intervenção, hoje sacralizada, da informática em toda a administração, inclusive a da universidade. Percebi há uns anos o quanto isso modificou a vida profissional na universidade e mesmo a pedagogia. E a mudança não é para melhor.
A informatização traz grandes perigos. Sou particularmente sensível aos perigos da indiscrição que a informatização traz, a carteira de identidade eletrônica. Isso modifica completamente a noção que temos da liberdade individual.
Folha - O sr. tem computador ou já se conectou a alguma rede eletrônica?
Lebrun - Não, Deus me livre. Para que me serviria? Para procurar todas as definições que Kant dá de idealismo transcendental? Se eu tivesse um computador, discaria 3615 Descartes? (risos) (Lebrun faz referência ao terminal de serviços e informações da companhia telefônica francesa, que dispõe também de correio eletrônico). Pergunto se isso modifica profundamente o sentido da pesquisa. Acho que não. Talvez economize tempo de trabalho.
Folha - Penso mais na relação das redes de computador com o espaço público.
Lebrun - Penso mais na TV, na influência que ela pode exercer. Há o risco de morte da imprensa escrita. Será a morte de toda a cultura. Compare as informações dos jornais da TV e os escritos. A TV dá a informação em função do impacto visual. Não há nenhum esforço de análise, de ponderação, do que é a informação importante. Qual é o efeito desse bombardeio de informações sem seleção alguma? Embrutecimento e despolitização, analfabetismo e incultura. Gente inculta, uma espécie de atores de "A Laranja Mecânica".
Folha - Então os tecnófobos têm razão?
Lebrun - Não, não. É ridículo querer enterrar a técnica. Eles têm razão em assinalar o problema. Mas estão errados em lançar o opróbrio sobre a ciência, sobre a técnica moderna. A tecnofobia é a crítica sistemática da ciência, a crítica reacionária da ciência enquanto tal, com posições utopistas. Claro, há uma crise da ciência e da técnica, e os filósofos de Frankfurt tiveram o mérito de percebê-la antes dos outros. Mas a verdadeira crítica, no sentido que Kant deu ao termo, ainda está por ser feita.
As maldições lançadas contra a técnica apenas retardam essa tarefa, que é necessária. Acho que todas as posições ideológicas extremas, assim como o utopismo descabelado, podem levar a posições tão contestáveis, como as de Spengler ou Heidegger.
Folha - O que o sr. pensa da voga linguística e pragmática na filosofia? O professor brasileiro José Arthur Giannotti publicou um livro sobre Wittgenstein que provocou polêmica, polêmica relacionada a esta voga.
Lebrun - Mas o livro, que eu pude ler, não é de modo algum de filosofia analítica. Ele não analisa proposições. Ele tenta apresentar Wittgenstein...
Folha - Mas não é um livro de história da filosofia...
Lebrun - Não, ele se proíbe isso. Ele tenta relacionar esta reflexão sobre Wittgenstein com as que fez antes sobre condutas sociais, com sua sociologia. O que você queria de Giannotti? É sua maneira de se livrar do marxismo. Não acho que tenha havido um "tournant linguistique" (virada linguística) na sua filosofia. Isso é apenas um rótulo.
Sobre a filosofia analítica, eu a conheço muito mal porque ela me chateia (risos). Aristóteles fez melhor que os filósofos analíticos. Eles são frequentemente muito ignorantes da história da filosofia, pensam coisas que já estavam em Aristóteles... Não podemos generalizar, mas alguns falam demais, muitas vezes à toa.

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