São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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A porta de entrada do caos

JOSÉ LUÍS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Erro, ilusão, loucura" é o nome da conferência do filósofo Bento Prado Júnior no curso da Funarte. Os três termos configuram como que os "outros" da razão, figuras modernas da não-filosofia, das quais o filósofo pretende fazer uma espécie de "arqueologia".
Em momentos de crise, diz o filósofo, autores como Descartes, Kant e Wittgenstein delimitaram a filosofia por contraposição ao Outro da razão. "A filosofia foi nestes casos definida de modo negativo, diz ele, antecipando à Folha parte do que apresentará dia 28/09 no ciclo de conferências.
Bento Prado Júnior nasceu em 1937. Formou-se em 1959 na USP, onde em 1960 passou a lecionar filosofia. Aposentado compulsoriamente pelo regime militar em 1969, tornou-se pesquisador do CNRS (Centre Nationale de la Recherche Scientifique), em Paris. Voltou ao país em 1974 e, desde 1977, é professor da UFScar (Universidade Federal de São Carlos).
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Folha - Como o sr. vê hoje o problema da crise da razão?
Bento Prado Júnior - A palavra "crise" tem mais de um sentido. Há um sentido originalmente médico, que significa passagem do limiar de um estado para outro, travessia de um limite. "Crise" tem também um sentido político, como termo de um processo de transformação. E também o sentido de um resultado desastroso. Tenho a impressão de que, quando se fala em crise da razão, tem-se todas estas significações entremeadas. Comumente, no entanto, crise da razão tem o sentido de um diagnóstico negativo. Diagnóstico de uma razão que não é mais capaz de fornecer as suas razões, de uma filosofia que não é mais capaz de dizer a que veio. Quando se fala em crise da razão, fala-se em um estado de não-filosofia.
Folha - Quem são os que assim descrevem a crise da razão?
Bento Prado - Há um arco dos diagnósticos da crise da razão, enunciados no começo do século, que sofreu uma certa metamorfose ao longo dos anos. Nas diferentes tendências da filosofia no início do século -as tradições da fenomenologia, da filosofia analítica e do pensamento dialético-, tratava-se de devolver à filosofia sua função fundacional. A filosofia se abre no começo do século com o projeto de devolver à razão seu fundamento absoluto, retirá-la da crise em que estava mergulhada.
Folha - O que mudou nestas tradições desde o início do século?
Bento Prado - Entre as duas guerras mundiais, obstáculos diferentes parecem opor-se aos projetos originais de fuga à crise. O que ocorre então? Na fenomenologia, há o recurso crescente à esfera do mundo da vida. Na tradição do neo-kantismo, o paradigma kantiano dá lugar a um mínimo de historicismo.
No caso da filosofia analítica, Wittgenstein introduz modificações em seu pensamento posterior ao "Tractatus Logico-Philosophicus, de modo que a razão passa a ser buscada em práticas mais ou menos díspares. Isto tudo parece remergulhar a razão no empírico, no histórico. É como se houvesse uma espécie de historicidade naquele chão, que deveria ser imóvel, da razão. É como se a razão admitisse os seus pés de barro.
Folha - O que o sr. abordará em sua conferência?
Bento Prado - O que eu pretendo fazer nesta conferência é pensar estes problemas à luz de uma perspectiva muito estreita, centrada no último dos escritos de Wittgenstein, "Sobre a Certeza. O que me interessa é examinar como Wittgenstein delimita a idéia da razão em relação a seus outros: o sonho e a loucura. Meu interesse é ler os textos de "Sobre a Certeza consagrados à loucura e à insensatez sob a perspectiva das "Meditações Metafísicas, de Descartes, e da "Refutação do Idealismo, que é uma parte da "Crítica da Razão Pura, de Kant. Estes três textos têm a mesma ambição: determinar os limites do cognoscível ou do dizível.
Folha - O que há de diferente entre eles?
Bento Prado - São textos que têm uma mesma visada. Diante da crise, trata-se de restaurar a razão delimitando-a. Sem o esforço crítico de delimitação, a razão dissolve-se no seu contrário. Mas é como se o Outro da razão fosse definido de maneira diferente em cada um desses casos. E como se houvesse, na passagem de um a outro, um depuramento da mesma questão. O sujeito pensante é definido nos três autores em crescente abstração, ou des-psicologização.
Folha - Como isso se dá em cada autor?
Bento Prado - É como se Kant dissesse: há o cogito, mas o cogito cartesiano é excessivamente psicológico. É preciso uma expressão mais pura. É como se o Wittgenstein do "Tractatus dissesse: há o sujeito transcendental, mas o sujeito kantiano ainda é muito psicológico. É preciso gramaticalizá-lo. Este processo de purificação do sujeito, que corresponde a uma purificação da própria idéia de razão, é acompanhado por uma transformação contínua daquilo que é o Outro da razão. O que pretendo fazer é uma estilística dos Outros da razão.
Folha - O que em cada caso é o Outro da razão?
Bento Prado - O sonho e a loucura são em Descartes argumentos a favor de uma possível incapacidade da razão de ter acesso à verdade e ao Senhor. O Outro da razão é o erro, e o melhor candidato a exprimir o erro, o sonho. No caso de Kant, o sonho deixa de ser um argumento contra o acesso do entendimento à verdade, mas descreve-se a própria estrutura da razão como excretora de ilusão. No caso de Wittgenstein, a análise da razão dispensa o recurso ao sujeito transcendental, uma vez que é análise da linguagem. O argumento do sonho é tido como ruim, porque só há erro se este erro for corrigível, e o sonho não é corrigível. A idéia de um erro incorrigível passa a ser a idéia de um erro que está fora de qualquer horizonte regulativo. O argumento do sonho só é assim um argumento filosófico interessante porque faz emergir a idéia de um erro que não pode ser corrigido. Wittgenstein diria que erro incorrigível significa a falta de acesso a regras ante a qual defrontamos não o erro, mas a loucura.
Folha - O que resta à filosofia diante da loucura?
Bento Prado - A filosofia passa a ser algo como um acesso àquilo que está para além da regra, o caos que cerca o comportamento sensato das pessoas em sociedade e o uso regulado da linguagem. Por isso é interessante quando Wittgenstein diz que, ao filosofar, devemos mergulhar no caos primitivo e lá sentirmo-nos bem.
Folha - Como o sr. vê o modo pelo qual o filósofo José Arthur Giannotti pensa a crise da razão?
Bento Prado - Sabe-se que eu tenho muita simpatia pelo texto do Giannotti, como exprimi na resenha de seu último livro, "Apresentação do Mundo, que fiz para o "Jornal de Resenhas". A resistência que tenho é em relação ao fecho wittgensteiniano dado a uma pesquisa que visava uma ontologia do social e culminou numa teoria da crise do capital. O que me parece problemático é que neste último livro todo o esforço anterior venha a se exprimir na linguagem do segundo Wittgenstein. Isto significar dar à filosofia de Wittgenstein um alcance teórico, no sentido de que a teoria dos jogos de linguagem e das formas de vida funcionaria como uma espécie de teoria do ser social ou da sociabilidade. Isto me parece contrário ao espírito da reflexão wittgensteiniana, que pretende justamente dissolver a intenção teórica da filosofia e libertá-la da ingrata tarefa de descrever as coisas como são. Não se trata mais de descrever as coisas como são, mas o modo como falamos das coisas.

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