São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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A ousadia de um homem de idéias

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Para discutir a crise da razão, o caminho mais rico é partir dos opostos, daquilo que foi produzido para anular a idéia de razão. Numa reflexão mais nuançada sobre a racionalidade, Hitler pode ser tão importante quanto Descartes.
Assim pensa Adauto Novaes, mineiro de 56 anos, com passagem pelo lendário Caraça e há muito estabelecido no Rio, onde começou trabalhando como jornalista e desde meados da década passada tem feito mais pela cultura do que todos os nossos secretários e ministros da Cultura juntos.
À frente do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte, idealizou e montou uma dezena de cursos não apenas formidáveis pela qualidade de seus conferencistas, mas também pela repercussão obtida, inclusive a posteriori, com a edição em livro de suas palestras.
Um deles, "Os Sentidos da Paixão", editado como quase todos os outros pela Companhia das Letras, chegou a ficar 28 semanas na lista dos best sellers, às vezes em primeiro lugar. Depois de passar por várias esferas do sensível, pela televisão ("Rede Imaginária"), pela ética, pela criatividade ("Artepensamento") e pela licenciosidade politizada ("Libertinos/Libertários"), o último porto: a razão.
Não foi uma escolha casual. "A razão é o fio que percorre todos os nossos ciclos de conferências", salienta Novaes. "Ela é uma questão fundamental mesmo nos cursos que tratavam explicitamente do mundo do sensível, pois o objetivo implícito dos ciclos sobre as paixões, o olhar e o desejo era evidenciar os limites das paixões e mostrar como a tirania por elas exercida impede o pleno exercício da liberdade".
A cada novo ciclo, uma surpresa conceitual virando pelo avesso o senso comum. Quem só foi atrás da face mais vulgar da paixão e do desejo -amor em brasa, dor-de-corno, tesão etc- deu com os burros n'água. Idêntico imprevisto aguardavam aqueles que desconheciam o lado menos frívolo e carnal da libertinagem, a face menos intuitiva da criação artística e o grande paradoxo do olhar: a gente vê melhor fechando os olhos para pensar. Por todas essas sutilezas, o NEP não começou pisando em flores.
"Havia uma idéia arcaica do que seja cultura, no âmbito das instituições culturais, e, por conseguinte, uma concepção esclerosada do que seja reflexão", relembra Novaes os primeiros anos de sua gestão. "Cultura não é só folclore, belas letras, belas artes e espetáculos para consumo de massa. Não foi fácil convencer as instituições de que o pensamento também lida com invenção e experimentação. Por isso tivemos que captar recursos fora do governo federal".
Apesar do apoio dado pela atual direção da Funarte ("Márcio Souza tem se mostrado muito sensível às nossas idéias"), o curso sobre "A Crise da Razão" não teria sido possível sem o amparo do Sesc (Serviço Social do Comércio) de São Paulo.
"Foi o ciclo de conferências mais difícil de montar", revela Novaes. Crise e razão são dois conceitos complicados, até porque se confundem etimologicamente. Crise vem do grego "krinein", que quer dizer julgamento, decisão. Aliás, na hora de decidir quantas conferências teria o curso, Novaes e seu principal assessor, Alvaro Mendes, enfrentaram uma crise. Quantas cortar? Cortaram 40.
A uma possível cobrança sobre os oito mestres trazidos da Europa, Novaes responde: "Não havia outro jeito. Não temos grandes helenistas no Brasil, por exemplo. Ninguém entende mais do século 18 e dos enciclopedistas que Alain Grosrichard. Desconheço quem tenha formulado com mais agudeza os conceitos de consenso e dissenso que Jacques Rancière".
Quando o NEP da Funarte iniciou suas atividades reflexivas em 1985, com um seminário interno, intitulado "12 Questões Sobre Cultura e Arte", um deserto de idéias novas e questionamentos originais sitiava o eixo Rio-São Paulo.
Todas as ousadias esbarravam em velhos modelos de análise e lero-lero regados a água mineral. Romper com esse marasmo foi o primeiro golpe de audácia de Novaes e sua equipe. Outros o sucederiam, nenhum tão oportuno quanto a colocação na ordem do dia do tema da ética em plena era Collor.
Já não havia então a Funarte, extinta pelo governo Collor, o que obrigara Novaes a seguir sua linha de trabalho na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, sob o comando de Marilena Chaui. Restaurada a Funarte, no governo Itamar Franco, o NEP enfunou de novo as velas e já patrocinou dois cursos. Três com "A Crise da Razão". Pode haver crise de razão em todo o mundo, mas de idéias, na Funarte, não há não.

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