São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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A lógica atormentada

Coordenador justifica o curso 'A Crise da Razão'

ADAUTO NOVAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Certas coisas são produzidas pela necessidade, outras pelo acaso, outras, enfim, por nós mesmos." Epicuro
No ensaio "O Filósofo e a Sociologia", Merleau-Ponty nos lembra que, em sua última hora, Edmund Husserl nos deixou como herança uma advertência: estamos diante de dois possíveis -a racionalidade ou o caos. Na mesma época, Paul Valéry descrevia o destino da civilização e a crise do espírito em tom tristemente célebre: nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais, dizia ele: "Tanto horror não teria sido possível sem tanta virtude. Sem dúvida, foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo. Saber e Dever sois, portanto, suspeitos?.
Para falar da crise da razão, o poeta invoca como testemunha um "Hamlet intelectual que contempla milhares de espectros, medita sobre a vida e a morte das verdades e tem por fantasmas "todos os objetos de nossas controvérsias; mas ele hesita entre dois abismos, "porque dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem.
O "Hamlet intelectual recolhe e interroga, um a um, os crânios de alguns expressivos cultores da razão. Ao ver Leonardo Da Vinci, observa: "Sabemos que o homem voador, montado num grande cisne ('il grande uccelo sopra del dosso del suo magnio cecero') tem em nossos dias outras tarefas que a de buscar neve nos cimos dos montes para jogá-la na calçadas das cidades nos dias de calor... Outro crânio é o de Leibniz, "que sonhou com a paz universal. Este aqui foi Kant, Kant que gerou Hegel, que gerou Marx, que gerou....
Passados tantos anos, depois dessa dupla advertência, a de um filósofo e a de um poeta, não se pode dizer que vimos o triunfo da razão: as guerras tornaram-se o lugar comum das nossas vidas: diariamente, sem nenhuma emoção, vemos nos jornais e na televisão as descrições de centenas de mortos; vivemos na cidade do temor e da tristeza, adotada como o lugar natural e necessário; os relatos de escravidão já não espantam; os excessos tornaram-se verdadeira necessidade: o corpo busca "excitantes brutais, emoções breves e grosseiras para sentir e agir. O isolamento do indivíduo é cada vez maior, superado apenas pelo sentimento de impotência diante das flutuações políticas.
Resta o consolo da superstição e dos cultos, ingênuas expressões de refúgio de felicidade, como se o bem pudesse resultar do encontro de vários males. Fundamentalistas dirigem a política, seitas fanáticas espalham-se em vários países, cultos diabólicos, imolação de crianças, suicídios em massa, massacres políticos. Os tarôs, as cartomantes e os videntes ocupam o lugar da ciência política. A crise política, a crise ética, a crise de sensibilidade atestam mais uma vez a percepção de Valéry, que se espantava com o próprio pensamento: "Excuso-me (e me acuso) por sonhar às vezes que a inteligência do homem, e tudo aquilo através do qual o homem se afasta da linha animal, poderia um dia enfraquecer-se, e a humanidade, insensivelmente, voltar a um estado instintivo..."; "Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade de uma vida.
Não podemos, portanto, pensar o nosso presente sem evocar a crise. Mas o que é uma crise? Quais são suas origens e a sua natureza? Se a crise não é um acontecimento apenas, ou um conjunto de acontecimentos que configuram um mundo -nosso mundo presente-, é porque ela guarda também um sentido oculto, que nos leva a procurar reencontrar o que nela, ou por causa dela, foi perdido.
A crise exige de nós reflexão: falar da crise da razão nos leva a pensar não apenas os acontecimentos "históricos, mas também os "fundamentos da crise, que, em última análise, são não-acontecimentos, uma vez que eles podem ser entendidos como uma "continuação do mesmo. Eis uma hipótese que o ciclo de conferências procura discutir: a crise já estaria dada no próprio momento de fundação da idéia de razão?
Heidegger, na sua "Introdução à Metafísica", pensa assim: "O declínio da determinação do 'logos' -declínio que torna a lógica possível- já começa precisamente em Platão e Aristóteles. O declínio já está constituído na grandeza mesma do primeiro acontecimento e por isso não há declínio no sentido de um erro (o famoso acidente de percurso), que nos faria deslizar por descuido fora da grandeza do começo, mas uma continuação. A crise da razão estaria, pois, na essência mesma do começo. Podemos interpretar este pensamento de várias maneiras, e uma delas é que, de início, o acaso dá ao homem não o bem ou o mal, mas necessariamente começos daquilo que pode ser um grande bem ou um grande mal: compete aos homens trabalhar racionalmente suas vidas.
O nosso ponto de partida e a estrutura que definiu este novo ciclo de conferências são o que alguns pensadores definem como a grande cisão que separa o homem do Ser, o sujeito do objeto, a ciência da filosofia, a liberdade da necessidade, o acaso da razão, a razão da imaginação, a paixão da razão etc.
Vemos que, ao longo da história, foram sendo criados conceitos para se contraporem à razão. Estes contrapontos produziram imagens de razão que, em última instância, levam à negação da própria idéia de razão, abrindo, desta maneira, caminhos para as crises. Para discutir a crise da razão, concentramos nosso esforço nos opostos, isto é, naquilo que foi produzido para anular a idéia de razão. Assim, teremos uma dupla reflexão: o conceito de razão em determinados momentos de passagem na história das idéias e a constituição de seus opostos.
Mas, ao trabalhar a idéia de opostos, nossa atenção está voltada também para outro problema fundamental: o oposto (a imaginação, o acaso, as paixões...) não deve ser entendido apenas como o outro radicalmente incomunicável com a razão -não se pode pensar em subordinação absoluta de um dos termos. Caso contrário, cairíamos em um determinismo insuportável, e o próprio ciclo de conferências não teria sentido. Em toda determinação racional existe uma margem de indeterminação, um dado ainda a determinar, certamente provocado pelo oposto da razão, criando o movimento ou passagem de uma razão latente à razão manifesta. São experiências racionais e imaginárias desfeitas e refeitas no curso do tempo.
Ora, a razão não é a autonomia plena que existe fora do seu contrário, mas uma autonomia que se constitui no triunfo sobre cada um dos contrários, não fugindo deles, mas lutando com eles e submetendo-os. Este é o movimento que permite a criação permanente e concreta da razão, uma vez que ela não cessa de ser interrogada pela presença do termo suprimido. Estamos, pois, diante não de um conceito racional instituído, mas de um pensamento em ação, uma razão "instituinte", que existe não apesar dos contrários, mas graças também à ação destes contrários. Só a religião e a racionalidade técnica -dois momentos de uma lógica semelhante- podem apresentar-se como razão absoluta, um Deus que não se discute, harmonia plena.
A razão, no sentido forte do termo, traz nela mesma uma lógica atormentada, que, a cada momento, presta contas do poder que exerce. Assim, toda razão é enigma se entendermos razão como o encontro com os opostos em um movimento sem fim. Neste sentido, crise e razão têm um só e mesmo destino: se formos à origem do vocábulo, vemos que a palavra "crise", derivada do grego "krinein, que quer dizer julgamento, decisão, capacidade de julgar; o "logos grego (ou a "ratio latina) também quer dizer julgar, faculdade de pensar, e pensar, como todos sabem, é pesar, decidir.
Crise e razão já nasceram de mãos dadas. Como nos lembra, por exemplo, Cornelius Castoriadis (no texto "Imaginário Político Grego e Moderno), a democracia traz em si, desde a origem, a idéia do trágico; é um regime sujeito à "hybris, à sua autolimitação: "A tragédia é também, e principalmente, a exibição dos efeitos da 'hybris' e, mais do que isto, a demonstração de que razões contrárias podem coexistir (é uma das 'lições' da 'Antígona') e que não é insistindo na própria razão que se torna possível a solução dos graves problemas que pode ter a vida coletiva (o que não tem nada a ver com o consenso indolente da época contemporânea).
"A Crise da Razão vai pôr também em discussão outro problema essencial: a partir da criação dos opostos resultou a idéia de que a razão é sempre exterioridades, isto é, ela é sempre aquilo que não somos. No seu livro "A Solicitude da Razão, Ferdinand Alquié nos mostra que, nesse sentido, para ser racional, é preciso primeiramente submeter-se e ceder à força externa: "A ordem dos objetos -escreve Alquié- constitui sempre para o meu desejo uma ordem à qual é necessário obedecer e, portanto, uma ordem imperativa. Mais ainda, se o racionalismo é verdadeiro, eu mesmo devo ser explicável: a razão não é, portanto, o que em mim trago, mas antes o que me conduz e pode explicar-me.
O que Alquié propôs, e o que outros filósofos contemporâneos desenvolvem, é a criação de um racionalismo metafísico. Ou melhor, aquilo que Merleau-Ponty chamou de "metafísico no homem, entendendo por metafísica não uma construção de conceitos "por meio das quais tentaríamos tornar menos sensíveis nossos paradoxos; é a experiência que fazemos dela em todas as situações da história pessoal e coletiva -e das ações que, assumindo-as, transformam-nas em razão. Talvez este seja um dos caminhos contra irracionalismos e superstições que afirmam o não-valor do mundo e a racionalidade técnica que se impõe aos homens e às coisas.

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