São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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no escuro do trem das seis

MARILENE FELINTO

Até o Kama Sutra, a milenar cartilha indiana de iniciação e prática sexual para homens, escrita em sânscrito, tem respeito pelas mulheres. Alerta os homens para o que as mulheres querem ou não querem. Define em detalhes, e com rara delicadeza, os desejos e as repulsas das mulheres segundo sua procedência.
Ensina paciência para com as mulheres do país de Dravida, que demoram para gozar. Sobre as mulheres de Aparatika, informa que elas são cheias de paixão. Quanto às de Stri Rajya, diz que têm desejos impetuosos e que a água do gozo delas escorre em grande quantidade.
Observa que as mulheres de Avanti, por sua vez, detestam beijar mas têm adoração por vários tipos de coitos. Quanto às de Abhira, e "àquelas do país perto do Indus e dos cinco rios (ou seja, o Punjab)", recomenda que sejam conquistadas através da "Auparishtaka", ou sexo oral. E assim por diante.
Hoje, tempos de brutalidade, homens aproveitam o aperto do trem do subúrbio para se esfregar em Cícera, ejacular nas costas de Lurdes, enfiar a mão por baixo da blusa de Elvira. Não, não é um trem de gado: é um trem que transporta gente, trabalhadores imprensados, esmagados uns contra os outros. São histórias reais. Corre sinistro, rangendo pelos dormentes dos trilhos, no escuro das seis da manhã, o comboio ferroviário da periferia paulista.
"Café com pão/Café com pão/Café com pão", gritava o trem poético de Manuel Bandeira. Mas o trem de ferro que atravessa São Caetano, Santo André e Mauá -o trem de puro ferro que segue na outra ponta para Guarulhos, Pirituba e Perus-, esse trem vai bolinando auxiliares de laboratório, ofendendo auxiliares de escritório, encurralando empregadas domésticas, currando camareiras.
O trem imundo, escangalhado, vai cuspindo gente pelo teto, pelo que um dia já foi porta e janela. Não há assentos, não há lugar, não há ar. "Virge Maria que foi isto, maquinista?", apitava a poética locomotiva de Manuel Bandeira. Ora, Cícera não pediu para que se esfregassem nela; Lurdes não permitiu que ejaculassem nas suas costas; Elvira não quis que tocassem nos seus seios.
As mulheres de Mauá cansaram. Preferem a segregração, o isolamento. Pedem vagões exclusivos para mulheres nas horas de pico. É escolha de vida ou morte. Não é feminismo. Os estupradores ameaçam persegui-las se elas reagirem. Não há grupo feminista, delegacia de mulher, conselho estadual de mulher, defesa civil ou constituição que as proteja. Elas estão sós.
Do outro lado do mundo, na 4. a Conferência Mundial da Mulher, na China, a primeira dama do Brasil, Ruth Cardoso, desfiou elogios ao avanço dos direitos humanos no Brasil, provavelmente esquecida do potencial de combustão instantânea do pênis dos tarados brasileiros. Certamente desavisada do ambiente favorável à prática e proliferação desses tarados nos trens da periferia.
Mas quem se importa? A periferia é outro mundo, fica a distâncias incalculáveis do nosso ponto de vista -e do de dona Ruth. Tem nomes estranhos como Vila Selma, Vila Dalva, Jardim Zaíra Gleba A, Gleba B, e centenas de outros jardins, ilusões de jardins que sequer lembram flores ou beleza -Jardim Lídia, Jardim Haydee, Jardim Roseli, Jardim Rosina, Jardim Santa Maria, Jardim Três Marias, todas sem brilho, flores vergonhosamente castigadas.

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