São Paulo, quarta-feira, 13 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinema americano vive sua Idade de Ouro

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um amigo insiste na tese (e eu concordo) de que, em matéria de cinema, os americanos são imbatíveis. Mais do que isso, ele sustenta que estamos vivendo a verdadeira Idade de Ouro do cinema; perto de Spielberg, diretores como John Ford são ingênuos, toscos amadores.
Acho que ele tem razão. O grau de planejamento, de coerência, de eficácia emocional faz do cinema americano de hoje aquilo que Edgar Allan Poe esperava do conto policial perfeito: que fosse como um relógio, isto é, com cada movimento concatenado aos demais, em correspondência e harmonia perfeitas.
Nunca os detalhes de um roteiro, de um cenário tiveram tanta pertinência com a orientação geral do filme. Os filmes se comentam a si mesmos; não raro, com ironia e esperteza.
Nunca, também, houve tanta arte em equilibrar cenas curtas, pormenores significativos, com o conjunto da obra -recordamos alguns instantes de impacto, como o vôo de bicicletas em "ET, mas é como se a cena criasse um símbolo do filme inteiro, harmonizando-se com toda a saga sentimental, infantil, espaçonáutica.
A coisa é tão bem-feita que desconfiamos um pouco. Afinal, isso é arte? A idiotice de um filme qualquer é tão idiota assim? Claramente, não.
Mas a inteligência e o método empregados em "Forrest Gump, por exemplo, fazem desse filme uma obra memorável?
No fundo, trata-se de saber se determinado filme é arte ou se não é. Questão muito complicada. "Forrest Gump, "ET, "Ed Wood, para não falar de uns cinco ou seis clássicos de Alfred Hitchcock, têm tudo para serem obras de arte. Estilo, técnica, coerência, economia, psicologia, inteligência, impacto, ambiguidade, ironia, distância.
Mas por que, então, parcelas do público mais exigente recusam-se a ver os méritos de Spielberg e adoram Abbas Kiarostami ou Glauber Rocha? Ou o ultrakitsch de Kieslowski?
Muitas coisas estão em jogo nesse tipo de avaliações. O primeiro aspecto é o que Spielberg e companhia escolhem, em geral, temas infantilóides.
O máximo de inteligência e sofisticação de linguagem está posto a serviço de um sentimentalismo carregado (pobre Rousseau, pobre Goethe do "Werther!) e de um mundo imaginário em que contrastes emocionais e "torcidas da platéia contam muito (pobre Schiller, pobre Byron, pobre Verdi, pobre Wagner!).
O espectador exigente detesta qualquer romantismo. Sua crítica ao romantismo é tão radical que mesmo critérios anti-românticos, como eficiência técnica, ironia, ambiguidade tornam-se suspeitos na avaliação de um filme de Spielberg.
Curioso que seja o mesmo espectador exigente aquele que adora Alfred Hitchcock -um produtor de diversões como qualquer outro, só que bom tecnicamente, e o fato de ser bom tecnicamente exige o mesmo grau de atenção aos detalhes, do jogo emocional, de ironia que está presente num filme de Steven Spielberg e seus congêneres.
Admita-se, então, que nem Hitchcock nem Spielberg sejam artistas. O que resta, como critério para um filme de arte, fora da técnica?
Será artístico, por definição, o filme malfeito, chato, travado, estranho.
Por que? Porque compartilha dos dogmas da arte moderna: intransparência, rusticidade, chatice, paralisia narrativa. Eu ia acrescentar: preciosismo de linguagem, citações. Mas isso é o que fazem, ou melhor, o que aprenderam da arte moderna, os diretores spielberguianos.
Torna-se regra, então, para fazer um filme de arte, o desrespeito a convenções artísticas, não só as clássicas, como as modernas. Um filme ruim e chato será artístico quando tratar, com maus recursos, diálogos cretinos, paradas sem sentido, alegorizações banais de temas transcendentes como a morte, o destino, o amor.
É nesse momento que o espectador exigente -esse ingênuo, esse inimigo da estética- admirará um filme malfeito e chato pela solenidade à la Kieslowski; um golpe comercial como os mais ínfimos concorrentes ao Oscar, só que pior.
O cinema europeu "de arte tem vícios tão comerciais e daninhos quanto o cinema comercial de Hollywood, que é melhor e mais inteligente.
Só que, entre Kieslowski e Spielberg, surgiu ultimamente um novo filão. Trata-se do "etnofilme. Ou seja, filmes chineses, iranianos, africanos, iugoslavos, tchetchenos, armênios, patagônios.
Assisti outro dia a "Os Silêncios do Palácio, filme tunisiano em cartaz no Espaço Banco Nacional. É um filme belíssimo. Como linguagem cinematográfica, não é nada, não interessa, não inova, não ostenta perfeição técnica nenhuma.
Mas, como tantos filmes chineses ("Lanternas Vermelhas), cativa o espectador pela estranheza dos costumes, pela enorme possibilidade dramática que existe na mera narração de uma história de vida.
Trata dos problemas de uma jovem, que desconfia ser filha bastarda de um poderoso local. O cenário sociológico é semelhante ao de "Casa Grande e Senzala: há um senhor vivendo num palácio, casado com uma dona, mas que se aproveita das empregadas e faz filhos nas mais bonitas.
O drama do filme está centrado na filha bastarda desse senhor tunisiano, em sua busca de reconhecimento e autonomia, enquanto a mulherada da senzala obedece rigidamente a padrões de compostura e discrição.
É um etnofilme, como tantos outros chineses. São todos belíssimos, ao explorar a carga trágica de uma sociedade tradicional, ou seja, de uma sociedade empenhada em fazer da infelicidade pessoal de muita gente a justificação de uma ordem voltada para o prazer (não a felicidade) de poucos.
Estranhamente, o filme também tem inspirado a seguinte interpretação: "As mulheres, na sociedade islâmica, são felizes e sabem o lugar que têm. Havia ordem ali. O problema da protagonista foi o de acreditar na liberação feminista. E é óbvio que uma mulher liberada tem mais problemas para buscar a felicidade do que uma mulher integrada à ordem islâmica.
A sensibilidade relativista e o desalento face à civilização ocidental fortalecem tais comentários. É claro que a ordem e a opressão são capazes de garantir felicidade aos oprimidos e infelizes. Um cachorro também é mais feliz do que um ser humano.
Só que perdemos o paraíso terrestre exatamente porque quisemos provar da árvore do conhecimento. Abandonamos a felicidade edênica exatamente porque há algo de animal no Éden. Todo tradicionalismo costuma acenar com as felicidades da ignorância. Estou do lado de Satã.
E por isso mesmo desconfio dos etnofilmes. Assanham, no espectador sofisticado, uma nostalgia da ordem e do "respeito a normas culturais monstruosas, cretinas, arbitrárias.
São bons como documentários. São sensibilíssimos, como este "Os Silêncios do Palácio. Mas não são apologias da ordem para consumo de quem está descontente com a desordem ocidental. Por serem feitos, chatos, conteudísticos, são belos filmes. Mas a estética é um domínio delicado.
O esteticismo está hoje a favor de uma ideologia infantil americana. O antiestético alimenta fantasias reacionárias, antropológicas, antiocidentais, multiculturalistas. O irracionalismo é uma tentação geral.
Desconfio que o sucesso de filmes tunisianos e companhia seja efeito mais de uma nostalgia do tradicionalismo retratado do que da grandeza dramática que possam ter.

Texto Anterior: Kelly e Sinatra resistem a tudo
Próximo Texto: Mostra celebra trabalho de Willy Ronis
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.