São Paulo, sábado, 16 de setembro de 1995
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A caça aos marajás, de novo...

JUAN FRANCISCO CARPENTER; MARCOS RIBEIRO DE BARROS

JUAN FRANCISCO CARPENTER e MARCOS RIBEIRO DE BARROS

"...este país está tão deteriorado, que cumprir a lei é uma tarefa revolucionária. Extrair a potencialidade da lei ainda é revolucionário no país..."
Osiris Lopes Filho, entrevista a "Novos Estudos - Cebrap", nº 42, página 59.

Cobrador de impostos não tem vida fácil no Brasil. Que o diga o mais eminente deles, cujas palavras em epígrafe lembram suas desventuras de servidor público mexendo em vespeiro.
É verdade que nem todos os dias desembarca em nossos aeroportos uma seleção de futebol trazendo farta bagagem, com destaque para o caneco.
O alívio que estará sentindo o leitor pensando nessa bagunça apenas bissexta é no entanto motivo de sobra para preocupação daqueles que vêem outros desembarques, certamente mais sutis, causando estragos silenciosos e vastos.
Antes que a linguagem cifrada cause impaciência, vamos direto ao ponto: anda em voga o ataque, agora em escala nacional, às carreiras de advocacia pública. Esquematizando um pouco, trata-se das instituições mantidas pela União (Advocacia Geral da União), pelos Estados (Procuradorias dos Estados) e pelos Municípios (Procuradorias dos Municípios), cujas funções básicas são a representação judicial desses entes, o controle interno da legalidade na administração pública e a assistência judiciária à população carente.
Como se vê, tarefas nem sempre populares, sobretudo para aqueles visados pelas atividades desses funcionários públicos: os sonegadores de impostos, os maus administradores, os violadores dos direitos humanos.
O que ficou dito já seria suficiente para indicar os ganhadores e perdedores desse fogo cruzado quase invisível. Há todavia um aspecto adicional, que talvez constitua o nervo do debate hoje intenso -e altamente necessário- em torno das atribuições do Estado em tempos de globalização acelerada.
É que estamos tratando de uma atividade tipicamente estatal -uma carreira de Estado, por assim dizer-, cuja privatização não ocorre a ninguém minimamente sensato. Se da esquerda à direita parece haver consenso a propósito de um núcleo de atividades intransferíveis ao setor privado, não deixa de ser tentador elocubrar sobre os interesses em jogo.
Sob a forma da denúncia fácil de distorções avulsas, tenta-se desmontar estruturas burocráticas de funcionamento já precário. Conhecendo-se nosso país, não é difícil antever o resultado. Ressuscitada uma vez mais como farsa, a caça aos marajás servirá de álibi para varrer do mapa servidores insolentes, que ousaram aplicar a lei.
Pior para a população carente, para os beneficiários dos serviços públicos, para o bolso do contribuinte. A modernização deixará assim mais alguns cadáveres em seu rastro.
A esta altura sempre haverá quem veja na abordagem de tal assunto o eterno retorno do corporativismo, agora travestido de defensor do interesse público. Suspeita justificada, dada a situação de aparente privilégio de algumas carreiras em face do restante do funcionalismo -reprodução perversa da distribuição desigual de riqueza no espaço exterior ao Estado.
Cria-se com isso o terreno para que uma sensibilidade de ocasião ponha ordem na casa, isto é, estenda a qualquer setor com sinais de vida a receita aniquiladora cujos bons serviços assumem a forma de hospitais precários, salas de aula vazias, êxodo de cientistas, viaturas descalças etc...
Mais um capítulo, como diria um mestre, da nossa incrível incompetência para copiar. Afinal, nada mais "primeiromundista" que a existência de uma burocracia estatal permanente, paga de maneira digna e controlada pela sociedade. Um cenário, reconheçamos, cada vez mais afastado do nosso tumultuado cotidiano. Com a palavra, os senhores parlamentares e os senhores governadores de Estado.

JUAN FRANCISCO CARPENTER, 29, e MARCOS RIBEIRO DE BARROS, 32, são procuradores do Estado de São Paulo.

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