São Paulo, sábado, 16 de setembro de 1995
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América Latina: de volta à UTI?

RUBENS RICUPERO

Nesta semana em que a Assembléia Geral da ONU deve pronunciar-se sobre a indicação que fez o secretário-geral Boutros Boutros-Ghali de meu nome para dirigir a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), a organização divulgou em Genebra o relatório anual em que toma o pulso da economia mundial e das perspectivas do desenvolvimento.
Trata-se de um documento denso e fascinante de mais de 200 páginas, fruto de pesquisa original em cima dos fatos que estão acontecendo. A edição atual cobre todo o espectro das questões econômicas e comerciais, mas dá atenção e espaço centrais a dois problemas que hoje dominam o debate: a turbulência das finanças internacionais e o persistente desemprego nos países industrializados.
Em ambos os casos, a UNCTAD confirma sua reputação de entidade capaz de produzir uma análise vigorosa e bem fundamentada dos problemas econômicos mundiais, acompanhada da coragem de propor soluções alternativas que, em muitos casos, vão contra a corrente do pensamento dominante na chamada "sabedoria convencional".
Antes de entrar nos temas principais, o relatório esboça um retrato global da economia mundial e constata que, após o acentuado aumento de 1994 (passou de um crescimento de 1,7% a 3,1%), ela começa a perder velocidade, devendo encerrar o ano com expansão de cerca de 2,9%.
Os resultados do ano passado se deveram, em grande parte, à recuperação dos países desenvolvidos, que recebeu forte impulso do crescimento econômico e da demanda por importados das nações em desenvolvimento, não só da Ásia, mas também da América Latina.
Já neste ano, registra-se uma desaceleração da economia americana, que puxa para baixo a dos demais industrializados, ao mesmo tempo em que a demanda por importações da Europa e do Japão se contrai, devido às dificuldades trazidas pela recente crise financeira a muitas áreas em desenvolvimento.
Mais uma vez, a América Latina comparece como problema e não como solução. Logo na primeira linha do estudo, se observa que, neste continente como um todo, o crescimento cairá de 3,7% para 2% -nível mais próximo da África que da Ásia. A principal razão para isso foi a reversão dos fluxos de capital, em decorrência da crise mexicana de fins de 1994.
A análise da UNCTAD aponta para uma deficiência fundamental nos fluxos para a América Latina, em contraste com os dirigidos às nações da Ásia do Leste e do Sudeste (que logo superaram os efeitos da turbulência).
É que, no nosso caso, eles se baseavam não em altas taxas de poupança e investimento internos e taxa de câmbio competitiva (como na Ásia), mas em "fluxos líquidos atraídos pela combinação de elevadas taxas de juros e valorização da moeda em termos reais", além das receitas temporárias das privatizações em alguns países.
Dessa forma, o ingresso de recursos acabou alimentando seu próprio ritmo, embora estivesse estimulando uma exploração de consumo (e não de investimento). Enquanto isso, ia destruindo a competitividade das exportações, com o surgimento de enormes e crescentes déficits nas contas correntes, sem um acréscimo correspondente na capacidade produtiva.
Até aí, não há talvez grande diferença em relação à leitura usual das razões e lições da crise mexicana. O relatório, porém, adota uma postura mais nitidamente alternativa e polêmica ao afirmar que a "crise decorreu da própria estratégia econômica, muito mais do que de uma escorregadela".
Lembra, por exemplo, que houve uma persistente tendência a subestimar a gravidade do problema que se estava criando, com o argumento de que, desde que gerados por decisões do setor privado, os déficits eram geralmente benignos, embora se tivesse já o precedente, no início dos anos 80, da crise da dívida chilena.
O preço a pagar será penoso. Vários países latino-americanos terão agora de voltar à UTI das curas severas de ajustamento. Em certos casos, a escala de correção a ser feita no balanço de pagamentos é gigantesca, uma vez que déficits de contas correntes superam exportações em mais de 50%.
Seria impossível, assim, evitar reduções dolorosas no consumo doméstico e na capacidade de importar de tais países, já que, devido a uma concentração dos investimentos em serviços, construção residencial e produtos não-exportáveis, parece ter havido pouco acréscimo na capacidade de exportação.
Por mais penoso que seja o ajustamento, porém, ele só terá um êxito perdurável se conseguir equacionar corretamente e corrigir os três pontos fracos postos em evidência durante a recente crise: 1) insuficiente competitividade em termos de volumes e qualidade dos produtos exportados; 2) baixa taxa de reinvestimento de lucros; 3) investimento agudamente deficiente em infra-estrutura.

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