São Paulo, sábado, 16 de setembro de 1995
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Há uma mulher invisível no Aterro

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando, há mais de um ano, comentei nesta coluna a publicação de um livro de cartas da poetisa americana Elizabeth Bishop, lamentei que tão pouco se soubesse sobre a mulher que ela mais amou e com quem viveu no Brasil, Lota Macedo Soares.
O livro de cartas se chama "One Art" e a figura que o domina é a de Lota, filha de José Eduardo Macedo Soares e mulher de assombrosa energia, a quem o Rio ficou devendo nada menos que o Aterro do Flamengo, o parque por ela construído palmo a palmo e que acabou por levá-la a sete palmos abaixo da terra.
Exaurida, esgotada pelo intenso trabalho, Lota, depois de várias sonoterapias, acabou tomando de uma vez só um tubo inteiro de sonífero. Suicidou-se, aliás, nos Estados Unidos, em 1967, quando em visita a Elizabeth Bishop, de quem não era mais, como se poderia dizer, a amante oficial.
Os jornais da época, é claro, contam como se construiu um esplêndido parque por cima do entulho das montanhas derrubadas dentro do mar e como Roberto Burle-Marx semeou o gigantesco jardim à beira-mar plantado de modo a que ficasse sempre em flor, pois quando uma espécie encerra seu número outra já entra em cena.
Ficou também na lembrança do Rio que em pré-estabelecidos espaços do Aterro do Flamengo fincaram-se outras madeiras, isto é, os postes dos campos de esporte. O Aterro é o único lugar do Rio, talvez do Brasil, onde pobre joga basquete e futebol entre cestos e balizas.
Quando vi aparecer Lota entre tantas das cartas alegres ou dolorosas de Bishop, fiquei querendo saber mais sobre ela, que conheci nos anos 50, na casa bucólica da Samambaia, em Petrópolis, quando vivia seu amor com a poetisa.
Acontece que não existe praticamente nada publicado sobre Lota Macedo Soares. Em livro o máximo que encontrei foi, no "Depoimento" que Carlos Lacerda nos deixou (editora Nova Fronteira) uma dúzia de linhas sobre Lota. Linhas de firme elogio e tom carinhoso, mas de uma parcimônia de dar dó.
Relembrei tudo isso ao ler agora "Entre Amigas", as cartas que trocaram, entre 1949 e 1975, Hannah Arendt, pensadora e historiadora judia, e a romancista americana Mary McCarthy.
Relembrei porque numa carta de Hannah, de 7 de junho de 1957, Mary lê esta informação: "Tenho recebido mais visitas que de costume, e com prazer. Elizabeth Bishop veio com a amiga brasileira, que é uma mulher extraordinária, que você provavelmente conhece. Se não, não deixe de conhecer. É divertidíssima e sabe contar muitos casos".
Carol Brightman, a competente organizadora do livro (publicado no Brasil pela Relume-Dumará), nos informa: "A poeta Elizabeth Bishop foi colega de McCarthy em Vassar. Sua amante brasileira, com quem viveu em Ouro Preto nas décadas de 1950 e 60, era Lota Macedo Soares".
Rachel de Queiroz e o Aterro
Ainda bem que outro dia achei de falar no esquecimento em que caiu Lota durante uma conversa que mantive com Rachel de Queiroz.
"Pois se falarem comigo vão ficar sabendo uma porção de coisas sobre Lota", foi a resposta que tive.
Rachel de Queiroz trabalhou duro, durante anos, sob as ordens de Lota Macedo Soares, exatamente na construção do Aterro do Flamengo. Carlos Lacerda era um crente na energia feminina.
Piada que jamais o aborreceu foi a de Antonio Maria, de que ele, Lacerda, seria o refúgio das mal-amadas, com seu perfil de medalha, voz de barítono cantante e frases de agente provocador.
Rachel lembra até hoje, como se fosse ontem, o jantar em casa de Lacerda em que se reuniu pela primeira vez -jantar de fundação do grupo, na verdade- o pessoal do Aterro do Flamengo, com Lacerda numa cabeceira, Lota na outra e mais Rachel, Rosinha Leão, irmã de Caloca, Berta Leitchik e tantas outras cujos nomes anotei mal e que não consigo no momento recuperar: Rachel está no Ceará e não tenho como pegá-la no telefone.
Rachel não jura que nesse jantar inaugural estivesse presente Elizabeth Bishop, pois com certa frequência Lota precisava alegar que uma enxaqueca impedira a amiga de comparecer. A enxaqueca era o que a poetisa já tinha bebido em casa, antes de decidir comparecer ou não à festa para a qual fora convidada.
Ao tempo do jantar do Aterro morava o casal Lota-Bishop na rua Padre Antonio Vieira, comecinho do Leme, e era fácil sair dali para qualquer outro endereço da zona sul do Rio. Acontece que as bebedeiras da Bishop podiam ser definitivas. Os amigos e amigas do casal sabiam que sempre poderia ficar vazia sua cadeira.
Como todo o mundo que se afeiçoa demais à bebida Elizabeth tinha seus períodos aceitáveis, de controle maior. E, segundo Rachel, sabia -o que é uma bênção- ficar em casa ao sentir que ia perturbar reuniões. Aliás, quem não a visse bêbada jamais poderia crer que uma criatura tão delicada de traços e de maneiras, de voz tão suave e falar tão moderado, jamais pudesse perturbar uma conversa por excesso de gim ou uísque.
Vale lembrar que sua ausência às reuniões em que o assunto era o Aterro era mais do que compreensível. No Aterro identificou logo seu único rival de vulto entre as paixões de Lota.
Em termos puramente de amor a volúvel era a Bishop, que no período brasileiro envolveu-se com uma americana discreta e atraente, Mary Morse, que construiu perto da Florália, em Petrópolis, a encantadora casa que a pintora Djanira dela adquiriu. Houve ainda, no período, outra americana, a quem Rachel se refere com meias palavras: era casada, foi mãe enquanto amou a Bishop, retornou ao marido, ao lar.
O que aconselho a quem de futuro se dedique a um estudo biográfico da portentosa criadora do Aterro do Flamengo é que converse longamente com Rachel de Queiroz.
A vida de Lota não compensa apenas pela evocação mágica do nascimento do Aterro e do esplendor de obras públicas que foi o Estado da Guanabara, períodos Carlos Lacerda e Negrão de Lima. É uma bela história de época também.
Lota não só era filha de um dos maiores jornalistas brasileiros, fundador do "Diário Carioca", como sobrinha de Benjamim Costallat, um dos romancistas brasileiros mais esquecidos, depois de ter sido dos mais badalados.
"Last but not least": Rachel de Queiroz não nos deixa esquecer que a idéia de instalar campos de futebol no Aterro foi dela e só dela, Rachel.

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