São Paulo, terça-feira, 19 de setembro de 1995
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Não nos dispersemos

LUÍS PAULO ROSENBERG

Os últimos números de inflação demonstram que o Plano Real está colhendo os frutos de seu respeito à lógica econômica: âncora cambial, congelamento de preços públicos, equilíbrio fiscal e aperto monetário, num cenário de desindexação crescente, conduzem inexoravelmente à queda brusca e persistente da inflação.
Num aparente paradoxo, entretanto, o governo vê erodir sua base de sustentação política exatamente quando o sucesso fica óbvio até para os inimigos. Nada de excepcional; apenas estamos constatando a chegada da segunda encruzilhada, presente em todos os planos de estabilização.
Relembremos a primeira encruzilhada. Viabilizada por um complexo sistema de indexação, a inflação vai-se perpetuando na sociedade, tenham sido as suas origens um déficit fiscal prolongado, um choque externo ou a prática de juros reais negativos.
O importante é que a indexação permite que o lado real da economia continue a operar, apesar da degradação acelerada da moeda: geram-se receitas públicas preservadas pela Ufir, exporta-se com o apoio de desvalorização diária e a poupança interna não se volatiliza porque a correção monetária sobre os ativos financeiros apazigua os temores dos que detêm títulos denominados na moeda aidética. Qual o outro lado desse sistema indexatório?
A geração do mais truculento processo de concentração de renda. Realmente, quanto mais elevada a taxa mensal, maior a injustiça perpetrada. Imaginem, numa inflação de 50% ao mês, enquanto o titular de um CDB vai receber 52% de rendimento mensal, o assalariado mínimo vai ver seu poder aquisitivo consumido naquele ritmo, sem nem sequer entender o que se passa, pois considera uma conquista ter então chegado ao reajuste mensal de vencimentos.
Forma-se, então, o pacto perverso de inflação: os ganhadores com o processo não se empenham em estancá-lo; os perdedores ignoram que a inflação é seu inimigo público número um e mobilizam-se mais facilmente em torno da bandeira nacionalista da autoprivatização do que na exigência de um programa de estabilização.
Para romper esse ciclo vicioso, antes que a hiperinflação venha a acontecer, é necessário um agente de ruptura, que conduza o país pela trilha da estabilidade. Este foi o papel do ministro da Fazenda Fernando Henrique, que, sabiamente, percebeu ser o Plano Real o lance de sua vida, capaz de elevá-lo do que seria uma constrangedora disputa, cabeça a cabeça com Enéas, para a Presidência do Brasil.
Por quê? Porque a sensação de bem-estar dos primeiros meses da redução da inflação conquistaria as massas, sem maiores riscos de fracasso, já que a concepção técnica inicial do plano era bastante sólida. Assim, tomamos o caminho certo, na primeira encruzilhada.
Mas combate à inflação não é festa do caqui. Como no processo de desintoxicar o drogado, produz suadouros, arrependimentos, sofrimento, enfim. Pior: se os condutores da política econômica optarem por mais impostos, exagero nos juros reais praticados e valorização cambial, em vez de cortes profundos nos gastos públicos, juros alinhados aos internacionais e privatização selvagem, o plano funciona igualmente, só que o sofrimento de empresas e famílias é muito maior.
Comparem-se, por exemplo, os cortes até os ossos que se fizeram no governo argentino com a depilação a cera do nosso caso, para se ter uma idéia de por que lá, ainda que o sofrimento tenha sido enorme, o povo sabe que, primeiro, o governo sacrificou-se até o limite antes de pedir a aceitação de perdas pelo setor privado.
E, assim, estamos chegando à segunda encruzilhada do Real. A política econômica está provocando a maior quebradeira de empresas dos últimos anos, a demissão de milhares de trabalhadores e até o desaparecimento de um dos dez maiores bancos do país.
A chiadeira que tanto sofrimento induz é ensurdecedora e crescente. O custo político de bater num governo que gerencia tanta desgraça é baixo, como revela o progressivo distanciamento, em relação ao governo, que se vem observando do fisiológico PFL e do troglodítico governador paulista, justamente quando devemos completar a modernização do país, que tornaria o Real realmente irreversível.
Como o próprio presidente falhou em alertar devidamente a nação de que o sofrimento viria, a sensação de abandono e desânimo é palpável. Como a equipe econômica não cuidou de minimizar esse sofrimento, as reações serão muito fortes. Cabe a todos os brasileiros de bom senso a responsabilidade de ajudar a esclarecer o dilema, indicando que, mesmo produzindo dor, este é o melhor programa de estabilização que já tivemos. E que abastardá-lo, em nome do imediatismo, seria tomar o atalho para um passado inflacionário, irracional e injusto, que há tão pouco tempo nos conduzia ao abismo.

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