São Paulo, terça-feira, 19 de setembro de 1995
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Projeto Axé é a imaginação contra miséria

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Quem é você?, pergunta o menino de rua, cheirando cola em Salvador. Ele olha o educador do Projeto Axé que tenta abordá-lo. Diante desta pergunta, se abre o centro da questão social brasileira. "Quem é você? De onde vem você? Com que direitos você quer me ajudar? Que intenções? Você é da polícia? Você é da prefeitura? Você vende crack? Você é viado? Você quer miché? Quem é você?
Quem somos nós que somos contra a miséria, mas moramos fora dela? Ninguém sabe bem porque é contra a miséria. Em geral, é uma empada feita de culpa e caridade (parecem amor), horror estético, hábito, mania de limpeza, obsessividade, medo, ódio aos pobres, amor a si mesmo, militância burra, até fascismo purificador. Ninguém pergunta ao miserável como quer ser tratado. O miserável é nosso objeto; não um sujeito. Miserável não tem desejo. Para ele (para nós) bastam os galpões de abrigo, os banhos de desinfecção, as favelas (desde que invisíveis), em suma, as periferias. Se não víssemos os pobres, tudo bem.
O que nos aflige nos meninos de rua é que eles teimam em sair da periferia e vêm para os centros. Eles são a miséria fora do lugar. Com mendigo velho é fácil lidar: "Bebeu, é vagabundo.... No caso do mendigo, a culpa é dele. No menino de rua, a culpa é nossa.
Ele desorganiza nossa visão de miséria. Não mais a miséria em compota, "en galantine, longe dos olhos. Mas a miséria ali, estragando a paisagem. Com a miséria dos meninos, ficamos muito expostos. Pior: o menino, o bebê de rua (já existem muitos), o gurizinho-mendigo nos dá uma estranha vertigem porque ele é o "antinenem. Normalmente, o filhote provoca o desejo de abraçar e de dar beijinhos, que bonitinho!... Isto nos enlouquece, pois sentimos horror do que nos atrai. Ele nos ameaça com sua fragilidade. Um leãozinho que ainda não morde.
Ele se acha normal. Nós é que nos sentimos anormais com sua presença. "Quem é você?, pergunta ele. O menino-mendigo não nos desculpa, não tem piedade de nós. Ele é um problema existencial nosso. Ele estraga nossas memórias de infância. Ele é um ruído em Proust. Por isso o exterminamos.
Quem é você?
Pois na Bahia surgiu o Projeto Axé, que já salvou mais de 3.000 crianças, integrando-as na cultura. Talvez só em Salvador pudesse ter nascido esta idéia. A música, os rituais, o sincretismo, tudo leva a uma liberdade maior. Axé é a energia que sai da terra, há 400 anos, o sal da África no chão. Na Bahia, a cultura pobre negra é a cultura dominante. E os olhos virgens de um grande intelectual estrangeiro, Cesare La Rocca, junto a brasileiros como Marcos Candido, puderam ver o óbvio: nenhuma fórmula antiga resolve. Temos de descobrir com os meninos "como devemos ajudá-los. E nasce o Projeto Axé, invertendo a equação autoritária e policial, devolvendo a pergunta ao menino: "Quem é você?. Ele faz o menino se perguntar e aceita também a dúvida: "Quem sou eu, o educador?.
Caetano Veloso sacou que o Projeto Axé era seminal, poesia de invenção, e eu também reafirmo o que venho dizendo por aí: a) não adianta esperar a reforma burocrática para agir; b) só a miséria pode reformar a sentimentalidade branca; c) só a imaginação, funcionando por atalhos ("by passes) contra a resistência burocrática pode resolver o problema social, através de "revoluções parciais possíveis.
O Projeto Axé é a prova deste método. O Projeto Axé não quer expulsar ninguém das ruas, como quem esconde a sujeira. O Axé vê a miséria como o outro lado de um erro. É quase uma psicanálise de campo, despertando nos pobres meninos a idéia de que eles podem desejar, ter projetos, e não ser apenas escravos fugitivos do desejo dos outros. "Quem sou eu? Que quero eu? Não se trata de "dar nada ao menino de rua; trata-se de mostrar que eles têm de ajudar a salvar o menino de rua. O menino de rua é o nosso sintoma. Através dele, entendemos a crise de nossa razão. Todas as idéias ficam fora do lugar com os meninos de rua. O Axé acaba com a idéia de "marginalidade, porque as paredes caem. Sem paredes não há exclusão.
Quem somos nós?
O Projeto Axé quer fazer os meninos entrarem na cultura deste mundo de Salvador que eles só podem ver "de fora.
Não há lugar neste projeto para a militância tradicional (o "basismo careta foi banido). O fim é a coisa mesma; não há nenhum outro fim senão o misterioso desejo de viver. Não há caridade neste axé. Todos são profissionais recebendo salários bacanas, sem cristianismo fáceis e sem bondades autoritárias. O educador está ali para participar de um salvamento da própria razão. Exemplo de invenção: o custo de uma criança no Axé por mês é dez vezes menor que o custo de uma criança no corredor kafkiano da burocracia estatal. Nos sujos depósitos de menores. E aí está a importância do Axé. É uma boa idéia! Não há boas idéias na política de hoje.
Estamos numa emergência sem respostas. Verbas não bastam. Ninguém sabe como agir diante da miséria. Os fatos superam as interpretações. A violência é maior que a piedade. Não adiantam por exemplo bilhões de dólares para a saúde sem a reforma radical dos processos de atendimento. O combate a nossos problemas críticos só virá pela imaginação. Repito, imaginação. Qualquer tentativa acadêmica de acabar com a miséria leva retamente à idéia de genocídio. Ou vocês acham que as favelas serão reformadas por um plano urbanístico branco saído de uma prancheta de Ipanema, dentro do "cash flow de prefeitinhos bons? Nem no ano 3000. O 2000 já está aí para testemunhar nosso vexame. Repito (este artigo é de repetições): Só uma política de "by-passes pode funcionar. "By passes (safenas sociais, atalhos contra os milhões de vagabundos burocratas e fisiológicos que vivem à custa de 90% do orçamento público, impedindo qualquer mudança neste país. A burocracia é a base física da nossa falta de esperança. Qualquer solução careta vira um novo problema. E ficaremos na eterna dor de uma "modernidade insolúvel, achando lindamente que somos "pós-modernos, quando somos apenas atrasados, escravos de burocratas e de políticos sem idéias.
Vejam o problema dos sem-terra. Só a invasão das terras está criando a consciência da emergência. Repito: É preciso inventar leis de exceção dentro da democracia. Emergência, emergência e invenção. Juscelino, com toda a loucura, fez isso: grupos executivos que ignoravam os burocratas.
Acho super legal que FHC tenha atendido ao chamado de Caetano. Porém, fiquei espantado como era barata a necessidade de dinheiro para o Axé. Só 200 mil, salário de dez juízes do STJ. É espantoso também que não haja no Governo grupos pensando soluções alternativas. Revoluções parciais possíveis. Como fazem os artistas. O macropoder está hoje nas mãos de sociólogos e economistas de alto nível. Já é bom. Mas, acho que a efetivação política está precisando de artistas. A criança cheirando cola nos faz a pergunta essencial: "Quem somos nós?".

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