São Paulo, terça-feira, 19 de setembro de 1995
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De mãos atadas

ANDRÉ LARA RESENDE

Nos anos que antecederam a estabilização, a Argentina passou por surtos hiperinflacionários da maior violência. Apesar das absurdas taxas que chegamos a ter por aqui, nunca tivemos nada igual ao terror da desorganização hiperinflacionária. Domingo Cavallo foi o autor e o administrador do programa de estabilização argentino. Desde o fim da década de 50 a economia não crescia e a inflação era um problema crônico. Pois Cavallo está sob pressão.
A inflação está totalmente sob controle e não atingiu 5% nos últimos 12 meses; comparável à das melhores economias industrializadas. A Argentina cresceu quase 7% ao ano nos três primeiros anos após a estabilização. O ano passado, entretanto, o ritmo começou a se reduzir e o desemprego aumentou. A lua-de-mel terminou.
Apesar disso, Menem foi reeleito sem maiores dificuldades. Chegou-se a achar que havia risco de derrota. As pressões foram enormes. A crise que se seguiu à desvalorização do peso mexicano pôs o sistema financeiro argentino em maus lençóis. É preciso lembrar que para garantir a estabilização adotou-se na Argentina um sistema monetário muito próximo aos antigos "Currency Boards" coloniais.
A essência desses sistemas é que a moeda nacional é integralmente lastreada em reservas de uma moeda forte internacional. Para cada unidade de moeda nacional emitida deve haver uma unidade da chamada moeda-reserva em depósito com autoridades monetárias. A moeda nacional é como se fosse um certificado de depósito de moeda-reserva no banco central.
Nesse sistema, portanto, quando há perda de reservas internacionais, há uma automática redução da quantidade da moeda nacional em circulação. O Banco Central não tem como praticar uma política compensatória de mercado aberto, comprando títulos do sistema financeiro e injetando moeda. O Banco Central não tem também como exercer a atividade de emprestador de última instância, pois sem aumento das reservas internacionais não há -pura e simplesmente- como emitir moeda local.
Só há uma razão para adotar tal sistema: recuperar a credibilidade. Décadas de irresponsabilidade fiscal e monetária podem não deixar alternativa. No caso da Argentina, a substituição da moeda nacional pelo dólar tinha se aprofundado de tal forma que seria difícil revertê-la com base num sistema meramente fiduciário. As restrições impostas, em contrapartida, são enormes.
É possível que o "Currency Board" fosse de fato a única alternativa. Dever-se-ia, entretanto, ter deixado a porta aberta para a volta gradual ao sistema fiduciário.
Aqui é que solução argentina deixou a desejar. O programa de estabilização não se limitou a estabelecer a necessidade de cobertura cambial integral para o estoque de moeda nacional em circulação; deu também direito legal de circulação para o dólar. Pecado capital.
Com a circulação em paralelo do dólar oficializada, a chamada dolarização não se reverteu. A confiança na moeda nacional, embora largamente recuperada, é ameaçada por qualquer perspectiva de desvalorização cambial: muda-se automaticamente para dólar sem nenhum inconveniente.
Resultado: de mãos atadas, sem poder fazer políticas monetária e cambial, a Argentina viu recentemente a taxa de desemprego atingir 18%, e Cavallo, que personaliza a estabilização, pode cair.

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