São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 1995
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Filme de 74 de Ettore Scola é irrelevante

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Passei cerca de 20 anos de minha vida escutando uma recomendação, quase um pedido -o de que eu visse o filme de Ettore Scola "Nós que Nos Amávamos Tanto".
Mas o filme nunca passou na televisão, nem estava disponível em vídeo, e só agora, no Cinesesc, está sendo reprisado.
As pessoas que agora fazem fila para assisti-lo são as mesmas que o tinham visto nos começos da década de 70. Todo mundo está revendo o filme -senti-me estranho com o fato de ir vê-lo pela primeira vez.
É um filme simpático, esquerdista, engraçado, sentimental. Conta a história de três amigos, que se conheceram no final da guerra, na resistência antifascista. Com o tempo, se separam. Apaixonam-se sucessivamente pela mesma mulher.
Um deles leva a vida como enfermeiro num hospital, o outro é crítico de cinema e professor obscuro, o terceiro se casa com a filha de um grande construtor, torna-se burguês e trai os ideais da juventude.
A história do filme começa em 1945 e termina por volta de 1970 ou um pouco antes. Uns vinte e cinco anos. É aproximadamente esse o intervalo de tempo que separa quem viu o filme pela primeira vez, digamos, em 1974, e os dias de hoje.
A biografia de vários integrantes do governo de Fernando Henrique Cardoso parece estar retratada no filme de Ettore Scola. Mas não só o governo FHC: já na eleição de Collor, era espantoso notar a rendição de muitos esquerdistas ao pragmatismo econômico.
Valia um romance: militantes leninistas no ministério Collor; é um romance: Fernando Henrique tendo como vice Marco Maciel.
Ao que tudo indica, a história da Itália depois de 1945 não foi menos pródiga em traições, oportunismos, contorções morais; "Nós que Nos Amávamos Tanto", exibido no Brasil depois de um intervalo de 20 ou 25 anos, é igualmente profético.
Que seja um filme profético, muito bem. Mas não é minha intenção elogiar a obra de Ettore Scola. O filme é extraordinariamente ingênuo, moralista e juvenil.
Pretende provar que, dos três personagens principais, um -oportunista corrupto- tornou-se solitário e infeliz, ganhou dinheiro mas perdeu o que tinha de melhor, a generosidade da alma.
E que os outros dois personagens -derrotados pela vida, medíocre- continuam felizes, porque preservaram a pureza de conduta.
Dinheiro não traz felicidade, a derrota é digna, o que vale é a consciência limpa: tais clichês são ilustrados no filme, de modo caloroso e contagiante, mas não deixam de ser clichês.
É um filme para adolescentes, no que os filmes para adolescentes têm de bom, que é o propósito educativo, exemplar, pedagógico.
Ou seja, reforça nos adolescentes a convicção que eles têm, a de nunca se renderem ao "sistema", a de se manterem íntegros em sua virgindade econômico-social.
Ao dizer que o filme é moralista, ingênuo e próprio para adolescentes, não assumo de modo nenhum o ponto de vista de um PC Farias.
Não estou dizendo que a "força das coisas" obriga a gente a abandonar os ideais da juventude e que você, meu rapaz, quando ficar mais velho, verá que o mundo real é diferente de tudo aquilo com que você está sonhando etc. etc.
Ao contrário; ao longo dos últimos 20 ou 25 anos, não me sinto mais corrupto nem mais cínico. O moralismo de "Nós que Nos Amávamos Tanto" é para mim sobretudo uma deficiência estática. Claro que acho feio o que Ettore Scola acha feio e bonito o que ele acha bonito, do ponto de vista ético.
O que torna o filme de Ettore Scola um filme precário, bobo, infantil não é a divergência de opiniões que se possa ter a seu respeito.
O espantosamente ultrapassado nesse filme é o fato de que Scola pretenda apresentar como novidades, como revelações -como algo digno de ser contado, romanceado, filmado- uma experiência que para nós, brasileiros, nada tem de excepcional.
A ingenuidade do filme não está, assim, no fato de mostrar pessoas boas e ruins -bondade e ruindade existem na vida real-, mas sim no fato de pretender fazer "revelações a esse respeito.
Todo o filme se mobiliza no sentido de evidenciar a força -ou a fraqueza- moral dos personagens. Mas isso é querer evidenciar o evidente -e só uma criança teria condições de ver no filme a "revelação" de uma coisa que, no Brasil de hoje, aparece todos os dias no jornal.
Também incomoda, no filme de Scola, essa glorificação ética da derrota pessoal. Como se o mais puro, o mais íntegro dos homens devesse ficar na sarjeta pela simples razão de que a sarjeta é rua coroa de louros, sua medalha, seu passaporte para o paraíso.
Se Ettore Scola fosse verdadeiramente o esquerdista que pretende ser, não estaria a tal ponto empenhado em dignificar e embelezar romanticamente a derrota de seus partidários.
Em "Nós que Nos Amávamos Tanto", quis mostrar que o insucesso dignifica, que o êxito corrompe. Reflete, com isso, uma situação em que a esquerda prefere a honra de uma derrota aos tropeços e crimes de uma conquista do poder.
É por isso, aliás, que FHC se sente tão bacana e tão viril. Sente-se ainda esquerdista, no fundo, porque seus compromissos e alianças não decorrem do moralismo ressentido e derrotado, do reclamismo congênito do PT.
Adere ao PFL por "machismo", por "pragmatismo", enquanto os achaques morais, os desmaios histéricos, os arrepios de escândalos são protagonizados pela feminilidade petista, que sempre encontrou razões de gozo na derrota, de elevação na infidelidade, de martírio no adultério. O PT é feminino, o governo FHC é machista e bacanão.
Não acho interessante aderir a nenhum dos dois estereótipos. São ambos histéricos e bobocas. Assim como é boboca considerar o filme de Ettore Scola relevante sob qualquer ponto de vista.

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