São Paulo, quinta-feira, 21 de setembro de 1995
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Perigosa complacência

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Com a extraordinária recuperação das reservas internacionais do Banco Central desde julho, instalou-se novamente uma certa complacência no governo e nos meios econômico-financeiros. Prevalece agora a sensação de que a política econômica brasileira não corre riscos sérios. De um pânico exagerado e vaticínios fúnebres sobre o Plano Real, passamos em poucos meses à confortável convicção de que o Brasil foi readmitido à condição de "mercado emergente e beneficiário da globalização financeira. A volatilidade das opiniões só não é maior do que a volatilidade dos capitais internacionais.
Não há dúvida de que a situação global das contas externas brasileiras melhorou consideravelmente de março/abril para cá. Mas a complacência é perigosa. E não é difícil explicar por quê.
Primeiro: o forte aumento das reservas não se deve (a não ser talvez marginalmente) a uma melhora da posição de balanço de pagamentos em conta corrente. Dados publicados recentemente pelo BC revelaram, como seria de se esperar, quadro preocupante para a conta corrente externa no primeiro semestre deste ano. O déficit corrente alcançou, em apenas seis meses, US$ 11,4 bilhões, em comparação com um superávit de US$ 2,8 bilhão no primeiro semestre de 1994.
A deterioração decorreu, como se sabe, sobretudo do comportamento da balança comercial, mas refletiu também fatores menos comentados, como aumento das despesas brutas de juros (de US$ 4 bilhões para US$ 5,4 bilhões), das remessas de lucros e dividendos (de US$ 0,9 bilhão para US$ 2,1 bilhões) e dos gastos com viagens internacionais (de US$ 0,5 bilhão para US$ 1 bilhão).
O déficit em conta corrente do primeiro semestre deste ano correspondeu a nada menos que 53% das exportações de mercadorias registradas no período. No caso do México, o déficit em conta corrente alcançou, no ano fatídico de 1994, 83% das exportações. Vejam bem o que isto significa. O Brasil conseguiu a proeza de produzir, já no segundo semestre do seu programa de estabilização, um desequilíbrio externo equivalente, em termos relativos, a quase dois terços do desastroso desequilíbrio que o México gestou ao longo de sete anos de estabilização com "âncora cambial!
No segundo semestre de 1995, o déficit do balanço de pagamentos em conta corrente será provavelmente menor, sobretudo pela diminuição do déficit comercial. Mas esta melhora se deve fundamentalmente à forte desaceleração da economia a partir de abril/maio. Se a economia voltar a crescer a taxas significativas, o desequilíbrio externo tenderá a reaparecer, especialmente porque nada se fez para corrigir a enorme valorização real do câmbio acumulada de julho de 1994 a fevereiro de 1995.
As desvalorizações nominais promovidas desde março último foram tímidas e não tiveram qualquer efeito sobre a posição real da taxa de câmbio. A valorização acumulada em relação ao dólar, desde junho de 1994, continua em torno de 30% quando se utilizam índices de preços ao consumidor como deflatores. A valorização acumulada é apenas um pouco menor quando se considera a taxa de câmbio efetiva, isto é, uma média ponderada das taxas de câmbio com moedas dos principais parceiros comerciais do Brasil.
Por outro lado, a forma pela qual se conseguiu recuperar as reservas internacionais do BC desde julho é, em si mesma, bastante problemática. Na velocidade e intensidade em que ocorreu, a recuperação das reservas não teria sido possível sem o arrocho creditício e as taxas internas de juros estratosféricas. Esta política teve, como se sabe, efeitos perversos sobre a economia doméstica, mas cumpriu papel central na reversão da posição externa.
Na medida em que o ingresso líquido de capital especulativo resultou em acréscimo das reservas, produziu-se uma dificuldade adicional para as finanças públicas federais, já atingidas pelas altas taxas de juros internas. A tentativa de "esterilizar o forte impacto monetário das operações do setor externo redundou em rápido crescimento da dívida pública federal em circulação. As despesas com os juros da dívida interna vêm aumentando, portanto, não apenas por causa do efeito direto das altas taxas de juro, mas também pelo crescimento da dívida interna, associado à expansão do endividamento externo e das reservas.
A isso se acrescenta o fato de que a qualidade das reservas do BC continua duvidosa, para dizer o mínimo. Trata-se, como se sabe, de "reservas emprestadas e, o que é pior, constituídas em grande medida pela tomada de recursos externos voláteis ou de curto prazo. O saldo de aplicações externas pelo chamado Anexo IV (em ações, debêntures, derivativos etc.) chegou a US$ 20,6 bilhões em 31/08/95, atualizado pela valorização dos ativos até essa data.
Não há dados atualizados para a dívida externa de curto prazo. A última informação, referente a 31/12/94, indica um saldo líquido de US$ 15,7 bilhões, deduzidos os haveres externos dos bancos comerciais brasileiros. Admitamos, para efeito de ilustração, que o saldo seja hoje aproximadamente igual ao do final do ano passado, isto é, suponhamos que as perdas de linhas de curto prazo provocadas pela crise mexicana tenham sido recuperadas. Nesse caso, o passivo externo de curto prazo, medido pela soma do Anexo IV e da dívida líquida de curto prazo, corresponderia a cerca de 80% das reservas do BC no conceito de caixa.
O mais grave talvez seja o fato de que a economia brasileira continua exageradamente exposta à instabilidade financeira internacional. A relativa tranquilidade dos últimos meses não deve levar-nos a ignorar que muito pouco foi feito para remover as razões fundamentais dessa instabilidade.
Deveríamos aproveitar a evolução para melhor do quadro financeiro externo, que pode ser apenas transitória, para corrigir as distorções acumuladas e reorientar a política econômica, reduzindo a vulnerabilidade externa da economia. Tanto mais que a experiência recente e remota mostra à saciedade que países periféricos como o Brasil, quando adotam políticas que levam a desequilíbrios externos expressivos, costumam sofrer de forma especialmente aguda as consequências de choques financeiros internacionais.

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