São Paulo, sexta-feira, 22 de setembro de 1995
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Unabomber é uma das vítimas da mídia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A sociedade industrial moderna impôs condições insuportáveis ao ser humano: densidade demográfica excessiva, separação entre o homem e a natureza, rapidez extrema das transformações sociais.
Os conservadores se queixam da decadência dos valores tradicionais, mas apóiam entusiasticamente o progresso tecnológico e o crescimento econômico.
Nunca lhes ocorre que não se pode operar transformações drásticas na tecnologia e na economia de uma sociedade sem provocar transformações velozes em outros aspectos da sociedade também, e que tais transformações levam inevitavelmente à ruptura dos valores tradicionais.
Os esquerdistas se identificam profundamente com os problemas de grupos que transmitem imagens de fracos e derrotados; é por masoquismo que se identificam com tais problemas.
Não escrevi os três parágrafos acima. Reproduzo trechos do manifesto feito pelo terrorista Unabomber, publicado pelo "Washington Post" nesta semana.
Unabomber já matou 3 pessoas, por meio de cartas-bomba. Age desde 1978. Exigiu que o "Washington Post" e o "New York Times" publicassem um manifesto de sua autoria (um caderno especial de oito páginas), comprometendo-se, em troca, a não matar mais ninguém.
Os dois jornais cederam à chantagem, obedecendo aliás a instruções do governo americano. Ambos racharam os gastos com a publicação do manifesto, que por razões técnicas só pôde ser reproduzido integralmente pelo "Washington Post".
O caso é espantoso sob vários aspectos, mas o mais espantoso de todos é o fato de que as idéias de Unabomber, pelo menos os trechos traduzidos pela Folha na quarta-feira, não têm nada de maluco ou de demente.
São, ao contrário, de grande sensatez. Um terrorista sensato: só isso é o que faltava para a loucura mundial.
Criticar o avanço tecnológico, os extremos da densidade demográfica, a ingenuidade dos conservadores, como nos trechos que reproduzi no começo do artigo, pode ser uma atitude polêmica, pode suscitar discussões ou dúvidas, mas não é sintoma paranóico nem loucura.
Unabomber vê com preocupação os avanços da tecnologia. Nota que a sociedade industrial é patológica, doente. Critica os conservadores com inteligência. Desconfia, nietzscheanamente, dos motivos ocultos atrás do esquerdismo.
Não que eu concorde com o que ele diz. Mas só o fato de ele ter produzido um texto com o qual se possa debater já é admirável.
Unabomber se revela um discípulo de Rousseau, de Nietzsche, de Thoreau; nota o desajuste entre natureza e sociedade.
Nota o que talvez seja um dos problemas mais graves da sociedade contemporânea: o avanço tecnológico, destinado a dar mais conforto à humanidade, termina tornando a vida ainda mais insuportável.
Alguns exemplos. Um carro foi feito para levar as pessoas mais depressa de um ponto a outro da cidade. É uma grande invenção. Mas por isso mesmo todo mundo compra um carro, e termina engarrafado.
Tudo é feito para economizar tempo. Teoricamente, um computador eliminaria as filas de bancos. Mas acontece que um computador, quando quebra, impõe o caos e filas quilométricas.
Mais grave: os esforços no sentido de melhorar a tecnologia, de ganhar tempo acabam por ocupar a mão-de-obra disponível de forma frenética.
O executivo ganha tempo ao falar no telefone celular, ao mexer em seu computador -e vive se queixando de falta de tempo. Seu lazer é cronometrado: nada melhor, então, que entrar no drive-through do McDonald's, com o celular em punho, para "ganhar tempo".
Só que ele não "ganha tempo", numa sociedade em que o tempo está sempre se acelerando. Ele apenas se adapta às novas exigências da eficácia moderna.
A tecnologia tinha tudo para trazer felicidade à espécie humana, mas o ambiente social nada mais fez senão frustrar essa utopia.
O terrorista Unabomber está certo em seu descontentamento. Mas é também um louco e um assassino.
Como entender essa contradição?
Tenho a seguinte hipótese. O grande problema de Unabomber não é a sociedade tecnológica, os conservadores ou a esquerda. Acho que ele sofre de solidão política. É uma vítima dos meios de comunicação.
Trata-se, talvez, de um caso radicalizado daquelas pessoas que mandam cartas para jornais. Falei delas há pouco tempo.
Criticam ou adoram, insultam ou enaltecem os colunistas e comentaristas; psicologicamente, encontram nos meios de comunicação um reflexo ou um anti-reflexo de tudo o que pensam.
Ou o que está escrito num artigo "é exatamente o que eu estava pensando", ou o que um colunista escreve "é o maior absurdo que eu já li na vida".
E que direito tem o articulista de dizer esta coisa ou aquela outra, de dar opiniões pessoais, quando ao fazer isso ele "esmaga", na autoridade do papel impresso, as opiniões e personalidades do leitor?
Unabomber é assim um terrorista contra a mídia, contra o "establishment" da mídia. Usa de assassinatos para ganhar espaço nos jornais. Suas idéias são respeitáveis -sou o primeiro a admitir isso-, mas aparentemente não conquistam ressonância nos meios de comunicação.
Ele não está contra o "sistema". Está contra a organização dos meios de comunicação, que rejeitam, como não poderia deixar de ser, os franco-atiradores opiniários, os messiânicos, os profetas de qualquer tipo.
Unabomber obteve uma vitória. Se eu fosse dono de jornal, nunca, mas nunca mesmo, aceitaria uma chantagem desse tipo. Um jornal não tem como função "abrir espaços" a quem quer que seja. Muito menos a assassinos.
O problema de Unabomber é que nunca lhe deram um emprego de colunista num jornal local. Extravasaria suas críticas sem precisar matar ninguém.
É um novo tipo de excluído: não o operário destituído dos meios de produção, mas o pensador rejeitado pelos meios de comunicação. A mídia contemporânea tem uma forma, um ambiente totalitários.
Minha modesta opinião, assim como a de Arnaldo Jabor, Antonio Callado ou Fernando Gabeira, assumem involuntariamente um caráter totalitário, profético, definitivo, o que é irritante ou insultuoso para o leitor comum.
Unabomber radicaliza essa idéia do leitor comum. É capaz de matar, pelo simples fato de que não dizem o que ele gostaria de dizer.
Mas sua mensagem ideológica é menos importante do que a vontade de ser criminoso e chantagista. Suas idéias são até certo ponto corretas, mas ao mesmo tempo são sintomas de sua frustração.

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