São Paulo, sexta-feira, 22 de setembro de 1995
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'Cova Rasa' recupera sentimento do horror

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Cova Rasa
Produção: Escócia, Inglaterra, 1994
Direção: Danny Boyle
Elenco: Kerry Fox, Christopher Eccleston, Ewan McGregor
Onde: a partir de hoje nos cines Metro 2, Eldorado 1, Gazeta e circuito

"Cova Rasa" parece atualizar a tradição do cinema britânico, em toda linha: há um pouco do Free Cinema dos anos 60, um muito de horror, um quê de suspense, outro tanto de humor cínico (quando não negro).
O filme se passa quase inteiro no apartamento onde vivem três jovens metidos a besta, David, Juliet e Alex. Pernósticos, eles escolhem a dedo um quarto habitante para o apartamento.
Por fim encontram Hugo, alguém que lhes parece bem interessante. Hugo entra e some. Os três arrombam seu quarto e descobrem que ele se matou, deixando uma mala entupida de dinheiro.
Que fazer? A pergunta é inevitável. Eles decidem esconder o cadáver e embolsar o dinheiro. Providência que implica, primeiro, em ato de profanação: mutilar o corpo e enfiá-lo numa cova rasa.
Uma coisa leva à outra. Claro, o dinheiro não era propriamente limpo. Os interessados existem, não se pautam pela delicadeza e logo se apresentarão. Aos poucos, passamos de uma despreocupada soberba juvenil a um clima de horror, em que se assiste à progressiva degradação dos personagens.
O principal "gancho" do filme, que determina sua exibição no Brasil, é a aproximação que se fez com o cinema de Quentin Tarantino. É um selo atraente. "Cova Rasa" também dirige um olhar que varia do cínico ao clínico aos acontecimentos escabrosos que descreve.
A semelhança fica por aí. Tarantino deixa seus filmes "vagabundearem", investe nas conversas laterais, chama o papo furado para o centro das coisas. Em "Cova Rasa" estamos longe disso. A construção está mais próxima do clássico, a intriga é que organiza o conjunto.
Mesmo quando o interesse pelo filme diminui, isso acontece porque a intriga afrouxa. E, mesmo nesses momentos, embora tenha poucos ambientes, o filme não se deixa dominar pela teatralidade. E, no geral, se aguenta: saímos da visão estritamente americana das coisas (da perversidade, em particular) para entrar num universo em que o sentimento religioso se impõe. Como se fosse um "conto moral" do francês Eric Rohmer, desfilam na tela personagens destituídos de um suporte moral preexistente. Mas, ao contrário dos de Rohmer, é como se procurassem todo o tempo o erro, o inferno.
Tudo isso faz de "Cova Rasa" um filme mais que interessante, sobretudo porque envolve duas estréias simultâneas, de Danny Boyle na direção e de John Hodge no roteiro.
Ao mesmo tempo, há um inconveniente que atravessa o filme: é como se Boyle gastasse boa parte do tempo produzindo brilharecos e jogando poeira nos olhos do espectador. Em suma, "sujando" o filme ali onde a limpidez se impunha e pré-fabricando o "cult", o filme para ser amado por pequenos grupos (como Tarantino, aliás).
Boyle o faz sem perder o sentido do ritmo e prejudicar a vibração dos personagens. É uma estréia que cria expectativa em relação a seus próximos filmes.
Por fim: a música é intragável.

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