São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Biografia desvenda o anjo mau da ciência

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Como Jesus", os homens notáveis têm muitos discípulos, disse Oscar Wilde, acrescentando: "Mas quem escreverá sua biografia será sempre Judas Iscariotes". Basta olhar recentes biografias para constatar essa afirmação.
Bertolt Brecht era um plagiador e colocava sujeira sob as unhas para ter mãos de operário. Paul de Man nutria simpatias pelos nazistas. Bruno Bettelheim maltratava crianças autistas das quais supostamente cuidava. Esses relatos apenas mostram que a vocação artística, científica ou intelectual não imuniza ninguém contra fraquezas ou erros. Mas mostram também uma certa compulsão em desnudar, em expor biografados, com ênfase em detalhes picantes.
Agora chega a vez de um monstro sagrado da ciência. Em "The Private Science of Louis Pasteur", (Priceton University Press, 378 páginas, US$ 29,95) Gerald Geison, historiador da Universidade de Princeton (EUA), refaz a biografia do cientista francês, com base nos cadernos de anotações do próprio Pasteur. A ocasião para o lançamento do livro não podia ser mais apropriada: a data de 28 de setembro próximo marca o centésimo aniversário de falecimento do fundador da microbiologia.
As obras sobre Pasteur tinham o caráter de eulogias. Prolongavam uma glorificação que tinha começado -fato pouco frequente- ainda durante a vida do cientista.
Nascido em 1822, de uma família humilde do interior, Pasteur orientou sua vida sob um tríplice signo: "vontade, trabalho, sucesso". "É preciso trabalhar", repetia sempre. Orientou-se de início para a química orgânica (seu trabalho sobre os isômeros do ácido tartárico deu-lhe fama instantânea).
Ao estudar a fermentação do vinho e do leite, chegou à conclusão de que o processo era devido a microorganismos transportados pelo ar e que podia ser evitado pela pasteurização. Com isso, deu considerável impulso à indústria francesa -assestou um golpe definitivo na "geração espontânea", teoria segundo a qual a matéria inanimada podia gerar seres vivos.
Para refutar essa antiga crença, fez uma série de complexos experimentos, submetendo inclusive líquidos ao ar dos Alpes para provar que, nessas condições, não havia contaminação -nem fermentação.
A partir daí, Pasteur aproximou-se cada vez mais da microbiologia -sempre com um critério pragmático. Para sericultores franceses, descobriu a causa de uma doença que liquidava o bicho- da-seda e a maneira de evitá-la. Para fazendeiros, criou vacinas contra o antraz e a cólera aviária. A soma assim poupada equivalia, segundo Thomas Huxley, ao total de indenizações de guerra pagas pela França à Alemanha em 1870.
Nem todos ficavam entusiasmados com tais êxitos. Entre os médicos, eram grandes as resistências à desmitificadora teoria infecciosa da doença. Membro da Academia de Medicina, e eleito por diferença de apenas um voto, Pasteur sustentou ásperas polêmicas com seus pares. Agressivo, conhecedor do maquiavelismo no meio científico, não tinha papas na língua: a seus adversários, que lhe cobravam a falta de diploma médico, acusava de ignorância em microscopia.
Aos 59 anos, um acidente vascular cerebral deixou-o parcialmente paralisado. Mas não parou de trabalhar. Foi então que se dedicou a pesquisas sobre a raiva, doença que conhecia bem: em criança, presenciara uma sombria cena -a cauterização, com ferro em brasa, de ferimentos em pessoas atacadas por lobos raivosos.
Quando aplicou a vacina contra a raiva no menino Joseph Meister, salvando-o da morte certa, a admiração do público chegou às raias do delírio. Pesquisas de opinião mostravam que seu nome era mais conhecido dos franceses que os de Napoleão ou Carlos Magno. Entre as homenagens que recebeu estavam as do czar da Rússia e do imperador do Brasil, dom Pedro 2º.
Mas a história não estava bem contada, diz Geison. Joseph Meister não foi o primeiro a receber a vacina anti-rábica. Pasteur já a tinha usado, secretamente, em dois outros casos, num homem que sobreviveu e numa criança que morreu. Dessa morte não falou a ninguém. Também não falou dos cães que sucumbiram à raiva, depois de ter recebido tratamento anti-rábico -que não era, a propósito, a vacina usada em Joseph Meister.
Contentou-se em dizer que, com seu tratamento, tinha conseguido impedir a eclosão da doença "em um grande número de animais. Geison diz ainda que Pasteur manteve segredo sobre o método usado para inativar o bacilo do antraz na preparação da vacina, que teria sido similar ao de um competidor. Finalmente, faz restrições à postura pessoal do cientista, descrevendo-o como um autocrata arrogante, um maquiavélico manipulador.
Mesmo no austero domínio da ciência, a mistificação não é tão rara. O crânio do Homem de Piltdown, cuja descoberta foi anunciada em 1912 por Arthur Smith Woodward, do Museu Britânico, e Charles Dawson, nada tinha de pré-histórico. Eram ossos de animais, modificados. O que tinha sido planejado como brincadeira para enganar Woodward teve repercussão tão grande, que os próprios autores da fraude não tiveram coragem de dizer a verdade.
O doutor William Summerlin mentiu ao dizer que fragmentos de pele mantidos fora do corpo do doador numa solução com nutrientes não despertariam resposta antigênica do receptor: para prová-lo, enxertava pele de ratos pretos em ratos brancos, sustentando que a cor preta se manteria -e se mantinha mesmo, mas mediante a conveniente aplicação de tinta.
É claro que a manipulação dos fatos, feita por Pasteur, nada tem em comum com essas mistificações. A vacina contra a raiva por ele desenvolvida salvou milhares de pessoas. É certo, porém, que o cientista estava longe de ser uma criatura angelical. Lutava furiosamente para ocupar seu espaço, e tinha bons motivos: bioquímico, era hostilizado por médicos, apesar de fazer parte da Academia de Medicina -para a qual foi eleito pela escassa margem de um voto.
Não foi da medicina que Pasteur recebeu apoio, e sim dos industriais. Seus trabalhos sobre a fermentação do vinho e sobre uma doença que matava o bicho-da-seda trouxeram-lhe fama e recursos. Foi o primeiro a colher proveito do que Arnold Relman, editor do "New England Journal of Medicine", denominou "complexo médico-industrial" (no caso, "complexo microbiológico-industrial").
Desarmava seus críticos com um simples argumento: sabia usar o microscópio; eles não. Pasteur sabia que o progresso científico não se faz sem recursos: uma constatação cruamente realista, que o tempo confirmou. Albert Sabin só se tornou o descobridor da vacina contra a pólio porque adiantou-se aos seus competidores na corrida pelas verbas de pesquisa. Os estratagemas que usou faziam parte do jogo da concorrência. Conclusão: cientistas não são anjos. "Os acontecimentos favorecem apenas os que estão preparados para eles", dizia o próprio Pasteur, e o fato de que ele estava preparado resultou em incomensurável benefício para a humanidade. Ao fim e ao cabo, é o que conta.

Texto Anterior: MORCEGOS; FERMENTAÇÃO
Próximo Texto: Entenda o que foi a revolução pasteuriana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.