São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995 |
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Cientista inventou a palavra vírus ARARY DA CRUZ TIRIBA e ARARY DA CRUZ TIRIBA; LUCIANO DE ALMEIDA BURDMANN
Sua vacina não foi a primeira no mundo a ser produzida contra uma doença grave, pois, muito antes, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) encontrou a forma de prevenir contra a varíola. Foi o criador da primeira vacina e, também como ocorreria com Pasteur, teve muitos opositores. Em segundo lugar, registros científicos evidenciam que, antes de Pasteur, Victor Galtieri (1879), em Lyon (França) transmitiu a raiva do cão ao coelho, de coelho para coelho e usou injeções intravenosas de matéria rábida para imunizar carneiros e cabras. E pode-se ir adiante. O vírus da raiva não chegou a ser identificado por Pasteur. A vacina pasteuriana, ocasionalmente, produziu efeitos indesejáveis, senão mortais, pois a matéria obtida da medula dissecada de coelho era grosseira e portava resíduos contaminativos. As injeções vacinais, mais numerosas que hoje, acarretavam queixas. Contudo, Pasteur, em sua antevisão, encontrou a terminologia exata para o agente causador da raiva: vírus, significando veneno. Não se pode negar, portanto, que foi o introdutor da virologia. Nascido em Dôle (leste da França), cresceu em vilarejos. Filho de um curtidor de couro, desde cedo conheceu a química. Aos 6 anos assistiu, involuntariamente, à cena que o sensibilizaria e o guiaria para a pesquisa em relação à raiva. Um homem fora atacado por um grande cão raivoso, e o tratamento da época consistia na cauterização imediata das lesões pelo ferro em brasa. E o menino Louis ficou impressionado com o sofrimento e os berros da criatura, imobilizada por outros homens, enquanto o ferreiro cumpria sua missão, ao mesmo tempo cruel e salvadora. Até então era esse o único método aplicado no homem ou nos animais atacados por cão ou lobo doentes. Pasteur cresceu em Arbois e aprendeu de mestres edificadores as bases culturais da arte e da ciência. Durante a adolescência fez esboços, desenhou reproduções, retratou familiares, amigos e conterrâneos. Aos 14 anos construiu, na parede frontal da casa, um relógio de sol, aplicação de seu universo físico e matemático. Graduou-se como químico. Profissionalmente amadurecido, passou a ser convocado para solucionar problemas que abalavam a produção e a economia, a exemplo da doença do bicho-da-seda. Desdobrou-se, pois, além da cristalografia e da fermentação. A esse tempo já era casado com Marie Laurent, filha do reitor da Universidade de Estrasburgo. Pasteur pedira-a em casamento poucas semanas após tê-la conhecido. E foi feliz na escolha, pois ela foi a companheira adequada ao seu espírito de pesquisador de campo e de laboratório. Paciente, aguardava-o até altas horas da noite, quando chegava sujo e malcheiroso pelo contato com animais. O que notabiliza Pasteur? Sua doação. Corpo, alma, tempo, tudo, à pesquisa. Mais que dedicação, chame-se ela plena, exclusiva ou integral, seu compromisso excedeu o presente e futuro, remontando ao passado de Spallanzani, o mago que investiu contra a teoria da geração espontânea. Pois Pasteur retomou o tema do religioso italiano e expandiu-o, tornando-se o pai da microbiologia. Não deixou de se desdobrar em atenções aos familiares, aos discípulos e até aos animais experimentais de laboratório, especialmente aos pobres cães, os mais visados. Frequentemente proferiu máximas e recomendações de pensador prudente. A retribuição dessa atenção é-lhe oferecida por seu maior biógrafo, no caso, Valéry Radot, seu genro. Pergunta-se: como modelista da pesquisa, Pasteur projetar-se-ia à época atual, da engenharia genética, das vacinas que são construídas numa planta arquitetural? Sem dúvida, os desdobramentos e fracionamentos dos microrganismos o surpreenderiam. Mas homens com a tenacidade, perseverança e disposição para o trabalho de Pasteur são prontamente disputados em qualquer tempo. Seu arcabouço encerrava muito mais que se esperaria do operário da ciência, fria e neutra, como deve ser essa área do conhecimento. É possível que a notabilidade de Pasteur seja maior por não ter sido ele o médico. Nem sequer foi o "físico", como eram chamados os médicos dos séculos anteriores. Por que, então, o modelo de Pasteur continua vivo? Hoje o progresso científico exige trabalho comunal, multiprofissional. Um engenheiro de manutenção não é mais o estranho no centro cirúrgico ou na UTI. À sua época, já produzia ele a reação de aglutinação dos notáveis da Europa: Emile Roux (1845- 1916), inovador da soroterapia; o escocês Joseph Lister (1827- 1912), fundador da antissepsia; o russo Elia Metchnikoff, relator da fagocitose. Charcot, o grande neurologista, foi amigo e defensor de Pasteur. O Professor Tillaux, o eminente e humaníssimo cirurgião de Paris, foi ajudante e grande amigo de Pasteur. Eis por que o detentor do título de "benfeitor da humanidade" continuará modelo para quem exerça a liderança científica. Para chegar a tanto, difundiu, de sobra, o respeito e a firmeza que neutralizavam ataques de detratores. Provou Pasteur, desde o século passado, com a simplicidade de um tarefeiro, como é possível ser instrumento, não uno, mas ele próprio elevado à potência multiplicadora, aproximando, além de tudo, o artista do cientista. Nada mais expressivo do que a forma como Rui Barbosa definiu Pasteur, conforme se lê em a "Medicina no Tempo", de Octacílio Carvalho Lopes: "Dele escreveu Rui Barbosa: 'Não era médico e criou a nova Medicina. Também cirurgião não era, e revolucionou a cirurgia. Tampouco se ocupou jamais com a obstetrícia, e milhares de famílias lhe devem a salvação de milhares de mães. Veterinário não foi, igualmente; e dele recebeu a veterinária as suas melhores conquistas. Nunca exerceu nem estudou a lavoura; e as idéias, que semeou, abriram os mais fecundos sulcos na agricultura moderna'". É Pasteur o singular e o plural, o artista e o cientista, o passado e o futuro. Para estimar sua grandeza é essencial que pousemos a visão nos seres microscópicos, através de uma lente, e contemplemos a fácies aterrorizada e angustiada da criatura doente de hidrofobia. ARARY DA CRUZ TIRIBA, 70, é professor-titular aposentado da disciplina de doenças infecciosas e parasitárias da Universidade Federal de São Paulo. LUCIANO DE ALMEIDA BURDMANN, 38, médico, desenvolve tese de mestrado sobre raiva humana na Universidade Federal de São Paulo. Texto Anterior: Pasteur vira 'griffe' Próximo Texto: A guerra dos germes Índice |
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