São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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A guerra dos germes

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cem anos é pouco tempo quando se trata de combater organismos que estiveram evoluindo por muitos milhões deles. Mas, tamanho foi o impacto das pesquisas de Louis Pasteur e de seus sucessores na microbiologia, que uma parte da humanidade se sentiu segura em relação a muitas doenças.
Ironicamente, na época em que a ciência mais sabe sobre o funcionamento, estrutura e modo de ação dos agentes causadores de doenças, se descobriu que esse conhecimento ainda é pouco.
Foi uma lição de humildade dolorosa para quem estava acostumado a vencer seres com um material genético milhares de vezes menos complexo que o do ser humano.
A ilusão de que vacinas, antibióticos e outras drogas trariam um mundo sem doenças ficou basicamente restrita a uma parte da população do planeta, porém. No Terceiro Mundo, milhões de pessoas -notadamente crianças- morrem de doenças cuja cura nem precisaria de um arsenal médico tão sofisticado.
Bastaria higiene e soro caseiro -cujos ingredientes mais importantes são sal e açúcar- para diminuir a mortalidade infantil provocada por doenças diarréicas.
Foi o próprio Pasteur o responsável por uma revolução parecida no que hoje é chamado de Primeiro Mundo, mas onde cem anos atrás se morria de "doenças de pobre", como cólera e diarréia.
A pasteurização do leite (leia texto nesta página) contribuiu para diminuir a mortalidade em crianças que não recebiam leite materno, mas sim leite de vaca sem a devida higiene. Com a pasteurização e o engarrafamento do leite, este deixou de ser um caldo de cultura de agentes de doenças (ou patogênicos).
Esses avanços em saúde pública foram paralelos aos avanços nos tratamentos médicos e o resultado foi o aumento da expectativa de vida e diminuição das taxas de mortalidade nos países centrais (e, quando disponíveis, nos países periféricos).
O principal fator na melhoria dos tratamentos médicos foi uma maior integração da medicina com a ciência.
Acostumado a tomografias computadorizadas, cirurgias por vídeo ou mertiolate, o homem ocidental tende a esquecer que ciência e medicina são duas coisas distintas, que não andam necessariamente juntas.
A homeopatia, por exemplo, é sem dúvida uma prática médica, mas não é reconhecida como científica pela grande maioria dos cientistas (apesar de os praticantes buscarem esse adjetivo por uma questão de imagem). O mesmo vale para medicina floral ou muitos tratamentos vendidos como "naturais".
O grande mérito de Pasteur, e de outros cientistas do século 19, como o alemão Robert Koch ou o britânico Joseph Lister, foi ter feito descobertas que, apesar de muitas vezes sem relação direta com algum problema prático, criaram conhecimento que permitiu avanços terapêuticos e diagnósticos.
O grande avanço foi a própria teoria de que doenças podiam ser causadas por germes, e não por um exótico "miasma", uma emanação que viria do solo e de matéria em decomposição.
A teoria defendida por Pasteur, de que microrganismos "germinariam" (isto é, se reproduziriam) no organismo, e que com isso afetariam o seu funcionamento, é a origem da própria possibilidade de tratar as doenças.
Esses germes seriam invasores do organismo, e à ciência médica caberia defendê-lo -seja com vacinas preventivas da invasão, seja com remédios e tratamentos para impedir que a ofensiva do microinimigo se alastre.
Essa terminologia bélica é uma analogia razoavelmente precisa do que acontece (apesar de intelectuais como a americana Susan Sontag acharem que ela tende a "discriminar" também as vítimas. Sontag se refere principalmente à Aids, uma doença infecciosa na qual a terminologia militar é particularmente útil, pois o vírus ataca justamente o sistema de defesa que deveria imunizar o organismo).
Curiosamente, apesar de a medicina ter dado um salto de qualidade no século 19, os médicos tenderam a ignorar a grande teoria biológica do período -a da evolução proposta pelo britânico Charles Robert Darwin no livro "A Origem das Espécies", de 1859.
Só recentemente surgiu um movimento em prol de uma "medicina darwiniana". O momento é perfeito: justamente quando a infectologia e a microbiologia estão levando sustos com vírus como o da Aids ou o Ébola, bactérias resistentes a tratamentos com antibióticos, ou protozoários como o plasmódio da malária capazes de driblar terapias com drogas até agora eficazes.
Onde há um ser humano, existem agentes patogênicos interessados em fazer dele um hospedeiro, um local agradável para "germinar". Os agentes patogênicos e os seres humanos (ou seus ancestrais) vivem essa briga, essa evolução conjunta ou"co-evolução", há milhões de anos.
Assim como o ser humano, a bactéria é um ser vivo interessado em sobreviver e se reproduzir. O vírus, embora há quem diga que não mereça ser chamado de "vivo", também é um ser com a mesma atitude existencialista básica.
Para conseguir esse objetivo, os agentes patogênicos podem adotar diversas estratégias.
O HIV, o vírus da Aids, tem um período inicial de replicação violenta e depois age mais comedidamente, embora permaneça ativo (isso faz parecer que ele está "latente"). Depois de um período que pode chegar a dez anos, surge o momento em que ele consegue passar por cima das defesas do corpo e termina por causar a morte da vítima.
É uma estratégia esperta de "germinação", pois nesse período em que ele aparenta não estar ativo, a vítima pode infectar outras pessoas -o que acontece em menor escala quando o doente está acamado em fase terminal.
Já o vírus Ébola foi selecionado pela natureza de modo diferente. Ele se transmite com facilidade bem maior que o HIV, através de gotas de saliva, por exemplo. Pode contaminar e matar rapidamente.
Pasteur e colegas deram origem a uma corrida armamentista darwiniana entre ciência e doenças que parecia estar sendo vencida pela medicina, mas "armas" novas do inimigo como o HIV ou o Ébola mostram que a luta nunca tem fim.
A vantagem da ciência moderna é a rapidez. O britânico Edward Jenner fez um clássico experimento com vacinação em 1796, mas só em 1840 que a vacinação tornou-se compulsória em seu país. Só em 1881 que Pasteur fez uma vacina com base científica, atenuando o agente patogênico (veja ilustração). Hoje a engenharia genética promete vacinas e drogas feitas sob medida. Estar um passo à frente dos patógenos é a única esperança da medicina científica.

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