São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma tragédia em Nova York e o fim do sonho brasileiro

MARILENE FELINTO
DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO E A PETRÓPOLIS

Erramos: 11/11/95
A cidade de Great Village fica no Canadá e não nos EUA (texto publicado à pág. 5-6 ( Mais!) de 24/9).
Escritório de Bishop na Samambaia
Parque do Flamengo, criado por Lota
Em 1966, Elizabeth Bishop aceitou convite para dar um curso de seis meses na Universidade de Seattle, em Washington. Ali começou um caso com Roxanne Cummings (nenhum parentesco com o poeta Cummings), 20 anos mais nova, casada e grávida. O envolvimento foi o começo do fim de sua relação com Lota de Macedo Soares.
Em cartas escritas nesse ano para a médica Anny Baumann, Bishop fala das dificuldades com Lota, mas de seu desejo de continuar com ela: "Eu simplesmente não sou muito boa para lidar com gente mandona, e Lota é mandona, claro -eu a deixei ser por anos e anos, e de repente descubro que não posso aguentar mais. (...) Mas Lota é igual a Carlos. Essa é a queixa universal -e não apenas de minha parte- sobre eles (...)".
"Estou angustiada por muitos problemas no Brasil nos últimos tempos -bem, não exatamente nos últimos tempos, pois eles vêm existindo desde que Lota pegou esse trabalho. É claro que eu vou voltar, e é claro que pretendo viver lá, e com Lota, para sempre e sempre."
Bishop antecipa sua volta ao Brasil, preocupada com Lota, que já descobrira seu caso de Seattle e passou a controlar obsessivamente a vida de Bishop. No início de 1967, os médicos aconselham uma separação. Bishop faz sozinha uma viagem de barco pelo rio São Francisco, quando se impressiona com a pobreza brasileira: "Eu nunca vi tanta miséria humana. Suponho que a Índia seja muito pior, mas Deus me livre de ter que um dia ir até lá...".
Em julho, ainda aconselhada pelo médico, Bishop segue para uma visita a Nova York. Em setembro, contra recomendações médicas e dos amigos, Lota chega a Nova York, onde tenta o suicídio na madrugada do mesmo dia, ingerindo uma dose excessiva de remédios, enquanto Bishop dormia. Entra em coma e morre uma semana depois. Da memória de seu trabalho no aterro do Flamengo, resta hoje uma única inscrição, com seu nome, no chão.
Stella Pereira, que esteve com Lota antes de ela viajar, conta: "Eu me lembro de Lota sentada bem aqui na minha sala, e Mary ali. Todo mundo achava que ela não devia ir para Nova York, por causa do estado de saúde dela. Mas ela teimava que queria ir. Houve um rompimento antes do desenlace. Ela quis ir para lá para conversar com Elizabeth e ver o que as duas iam fazer dali por diante. Talvez Lota acreditasse num reatamento. Mas eu não acho que Elizabeth seja culpada".
Aconselhada por sua médica, Bishop só vem ao Brasil depois do enterro de Lota. É recebida com hostilidade pela família e pela maioria dos que supunha serem também seus amigos. Surpreende-se em especial com a reação de Mary Morse, que parecia ter mantido com ela durante todos aqueles anos os laços de estreita amizade que a ligava a Lota. Segundo Stella, Morse -que, aos 86 anos, ainda mora no Rio-, é uma das responsáveis pela eliminação das cartas de Bishop para Lota.
Apesar da tragédia em que terminaria seu relacionamento com Lota, Bishop se lembraria para sempre de sua passagem pelo Brasil como os anos mais felizes de sua vida. Um de seus amigos, o poeta Octavio Paz, comentou: "De origem puritana, com dificuldade de exteriorizar seus sentimentos, a América Latina, especialmente o Brasil, significou para ela uma oportunidade de abrir seu coração, sua sensibilidade".
Vida de menina
Embora, no início, achasse irritante a "desleixada indolência" dos brasileiros, Bishop não mediu esforços para experimentar e expressar o que, na nova terra, fosse motivo de identificação e auto-esclarecimento. Entre os muitos motivos estava um livro, "Minha Vida de Menina" (1942), relato autobiográfico escrito por Alice Caldeira Brant, sob o pseudônimo de Helena Morley.
A história do diário de uma menina que crescia na cidade de Diamantina, em Minas, entre os anos de 1839 a 1895, despertou em Bishop lembranças de sua infância na cidadezinha de Great Village, nos EUA. Entre 1952 e 1956, ela traduziu o livro para o inglês e foi a Diamantina conhecer a autora, mulher do banqueiro Augusto Caldeira Brant. A edição saiu em 1957, com o título de "The Diary of Helena Morley".
O contato de Bishop com Minas Gerais estreitou-se muito depois que ela conheceu Ouro Preto, através de Lili Araújo, amiga de Lota que morava naquela cidade. Em 1965, Bishop comprou ali uma velha casa colonial -chamada casa Mariana em homenagem à poeta Marianne Moore-, que levou anos reformando, e se transformou em uma das paixões de sua vida.
No fim dos anos 60, Bishop foi condecorada pelo governo brasileiro com a Ordem do Rio Branco, prêmio de que sempre se orgulhou. Entretanto, deixaria o país para sempre no início dos anos 70, amedrontada com o regime militar. Desconfiava que estava sendo vigiada e que sua correspondência era violada.
"Nessa época, Elizabeth colocou à venda sua casa de Ouro Preto", conta José Alberto Nemer. "Apesar disso, não me parecia que, intimamente, ela estivesse completamente decidida a deixar o país e nem que sua permanência nos Estados Unidos fosse algo definitivo." A casa de Ouro Preto pertence hoje a Linda Nemer, irmã de José Alberto.
Seus amigos brasileiros gostam de lembrá-la como uma pessoa de fácil convívio, "de humor fino e aguçado, alguém em estado de vigília poética permanente", segundo Nemer. "Ela adorava a vida, gostava de viajar, de esquiar, fazer excursões e piqueniques", comenta Emanuel Brasil.
Dezenas de poemas de Bishop são inspirados no Brasil, entre os quais "Santarém", escrito quando ela já tinha saído do país, e que descreve, em análise do poeta James Merrill, "a duplicidade dialética" brasileira, que tanto atraía a poeta. Segundo ele, "em imagem carregada de uma luz gloriosa, nostálgica, quase bíblica", o poema mostra, através da descrição do encontro da água de dois rios do Amazonas (um marrom e outro azul), o que Bishop via nas ruas do Brasil: os olhos azuis do colonizador na pele marrom dos homens da terra.
Em carta a May Swenson, em novembro de 1971, Bishop explica sua atração pela duplicidade: "(...) Sempre recusei estar em qualquer coletânea (...) só de mulheres(...). Literatura é literatura, não importa quem a produza (...). Não gosto das coisas compartimentalizadas assim. (...) Gosto de preto e branco, amarelo e vermelho, jovem e velho, rico e pobre, macho e fêmea, tudo misturado, socialmente -não vejo razão para segregar, por qualquer motivo que seja, nem mesmo artisticamente".
Bishop passou os últimos anos de sua vida lecionando em universidades nos EUA, coisa que detestava. Uma aluna sua, de Harvard, comentou sobre isso: "Ela me disse que a universidade não era um bom lugar para um escritor".
Elizabeth Bishop morreu em Boston, de derrame cerebral, em outubro de 1979. Tinha 68 anos. Um dos últimos poemas que escreveu, "Crusoe in England", é a história de um homem velho, que ("como ela", concluiu um de seus amigos) volta à civilização, mas se sente ainda mais alienado e sozinho do que na ilha onde chegou náufrago e construiu, do nada, uma vida.
(MF)

Texto Anterior: Um poema para a amiga Billie Holiday
Próximo Texto: Lota ia na contramão da sociedade da época
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.