São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Lota ia na contramão da sociedade da época

JOYCE PASCOWITCH
COLUNISTA DA FOLHA

Se em tempos de GLS -gays, lésbicas e simpatizantes- ainda fica difícil, imagine na época em que Lota de Macedo Soares circulava pelo Rio na contramão. Aí sim é que a coisa ficava complicada.
Gauche por excelência, bem diferente das raparigas da época. Época, aliás, em que Jacinto de Thormes elegia Lourdes Catão, Teresa de Souza Campos e Elisinha Moreira Salles como algumas de suas dez mais. Até Carmem Mayrink Veiga, ela mesma, que ainda hoje frequenta -além de festas, lançamentos e vernissages- as páginas menos glamourosas dos jornais, em busca dos bens perdidos por seu marido Tony, penhorados.
Amiga de artistas, intelectuais e cabeças em geral, Lota só usava calças compridas. Fumava um Lucky Strike atrás do outro. Brigava com Burle Marx por causa do Aterro -ela era diretora-executiva da Fundação Parque Flamengo, em 1965.
Para subir a serra até Petrópolis, guiava seu Interlagos azul conversível -o mesmo que usava em baladas aceleradas pela avenida Atlântica.
Enquanto isso, as garotas do high society fugiam dos -e sonhavam com- rapazes de Copacabana: tipo halterofilista, cabelo escovinha cheio de Glostora. Camisa de ban-lon colante, corpo esculpido. Nada de perna fina, por favor -e muito óleo de bronzear Dagelle. Carros rabo-de-peixe, calças rancheira. Playboys do Clube dos Cafajestes, como Carlos Niemeyer, Paulinho Soledade, Jorginho Guinle e o playboy Baby Pignatari.
É claro que essa turma nada cool pouco interessava a Lota -que tinha como amigos Mário de Andrade, Carlos Lacerda, Gustavo Corção e Rachel de Queiroz. Nelson Rockfeller e Cândido Portinari, com quem estudou pintura, idem idem.
Padrões feijão-com-arroz decididamente não tinham a ver com ela. Da bailarina Mary Morse -com quem vivia em um apartamento no Leme- passou para Elizabeth Bishop, que conheceu em 51. O triângulo acabou virando uma reta.
Depois de ter cuidado de Bishop durante uma intoxicação causada por um caju, Lota acabou ficando com ela. Para mais um desgosto de sua tradicional família -e espanto do café-society vigente.
Enquanto as moças se aplicavam, queriam mais é rosetar, casar com algum bonitão cheio de dinheiro, Lota se achava feia -o que poderia ter emperrado suas relações com o sexo oposto.
Castidade, casamento e fidelidade, tudo tão up-to-date nesses tempos, não eram papo para ela -que também não se encaixava no padrão Angel Face, apregoado pela Pond's.
O caso de amor, a princípio o Nirvana -como todos, aliás-, acabou por esfriar com a construção do Parque do Flamengo. Muito trabalho, 14 a 15 horas por dia -enquanto Bishop, cada vez mais famosa, fazia sombra.
Vanguardista e símbolo de modernidade em tempos de machismo explícito, Lota pastou. Foi atrás de Bishop nos Estados Unidos -que já estava ligada em outra alguém.
Voltou morta.
Ossos de qualquer ofício.

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